Metrópole que pode se igualar, em termos de volume de produção cultural, com qualquer cidade do mundo, a capital polariza a produção e distribuição de bens culturais não só do Estado, mas do país. Pode-se dizer que a primeira manifestação teatral em solo brasileiro se deu no Estado de São Paulo. O jesuíta português José de Anchieta (1534-1597) escreveu autos que representou usando índios como atores e platéia. Durante os séculos seguintes, não se registrou nenhuma atividade notável nesse campo. A própria cidade de São Paulo foi apenas uma cidade provinciana e sem atividade cultural importante, até o início deste século.
O ciclo do café, no entanto, fez com que, desde o século passado, algumas cidades do interior entrassem para a agenda das grandes companhias européias itinerantes. Teatros como o Pedro ll, em Ribeirão Preto, recebiam companhias que passavam por Manaus, Rio de Janeiro e Buenos Aires, mas que nem cogitavam em se apresentar na capital paulista. São Paulo foi o berço do moderno teatro brasileiro. As experiências de dramaturgia de Oswald de Andrade (1890-1954) e de encenação de Flávio de Carvalho (1899-1973) marcaram a tentativa de levar aos palcos a revolução que os intelectuais fizeram chegar às outras artes na Semana de Arte Moderna de 22.
Essa revolução só se concretizou no Rio de Janeiro, mas foi em São Paulo que , pela primeira vez, uma companhia profissional - o TBC - se estabeleceu em uma sala com uma programação exclusivamente voltada para os novos cânones estéticos. Franco Zampari (1897-1966) foi o visionário italiano que perdeu vida e fortuna para concretizar esse sonho. Produtor e proprietário do TBC (1948-1964), trouxe da Europa diretores como Adolfo Celli, Ruggero Jacobbi, Flamínio Bollini Cerri, Maurice Vaneau, Luciano Salce e Alberto d'Aversa. Atores como Paulo Autran, Cacilda Becker, Tônia Carreiro, Cleide Yáconis, Fernanda Montenegro e Sergio Cardoso ali começaram ou se firmaram.
O maior dramaturgo paulista (e um dos três maiores brasileiros), Jorge Andrade (1922 -1984), viu ali montadas suas peças Pedreira das Almas (1958), A Escada (1961), Ossos do Barão (1963) e Vereda da Salvação (1964). Outros autores nacionais, como Millôr Fernandes, Lúcia Benedetti, Lourival Gomes Machado e Edgar da Rocha Miranda também foram encenados no TBC.
Entre eles podemos destacar Abílio Pereira de Almeida. A própria noite de estréia incluiu um texto seu, A Mulher do Próximo, em programa duplo com La Voix Humaine, de Jean Cocteau. Cronista do cotidiano da alta sociedade paulistana, da qual fazia parte, Abílio teve também montadas no TBC: Pif Paf (duas vezes, em 1948, ainda na fase amadora, e mais tarde, em 1958, com o nome de A Dama de Copas), Santa Marta Fabril e Rua São Luis, 27 - 8. Também se firmaram ali os diretores Antunes Filho e Flávio Rangel, os dois expoentes dessa geração de diretores. Durante a década de 60, dois grupos polarizaram a produção teatral mais importante paulista - e brasileira.
O Teatro de Arena teve início com um grupo que procurava espaços de atuação para os primeiros formandos da Escola de Arte Dramática, fundada por Alfredo Mesquita, em 1948. De 1953 a 1957, dirigido por José Renato, o grupo se limitou a montar textos estrangeiros (Marcel Archand, Luigi Pirandello, Tennesse Williams, Sean O'Casey) ou nacionais (Silveira Sampaio, Augusto Boal, José Renato), nos quais a maior curiosidade estava na própria forma adotada para a relação palco-platéia: uma semi-arena.
Primeiro em clubes e espaços cedidos, e depois em seu próprio espaço, na rua Teodoro Baima, no centro da cidade, o grupo lançou profissionalmente, nessa época, atores como Eva Wilma, John Herbert , Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Viana Filho. Em 58, deu-se a grande virada do grupo, com a estréia de Eles Não Usam Black Tie, obra-prima de Gianfrancesco Guarnieri, que tinha como protagonistas, pela primeira vez em nossa dramaturgia, operários brasileiros. No elenco, além do autor, Lélia Abramo, Flávio Migliaccio, Milton Gonçalves e Chico de Assis, entre outros.
A partir dessa montagem, o Arena passaria a liderar um processo de criação de uma dramaturgia nacional voltada para a realidade política e social do país. Ali estrearam autores como Oduvaldo Viana Filho, Benedito Ruy Barbosa, Chico de Assis. Em 62, Augusto Boal passou a dirigir artisticamente a companhia. Adaptações de clássicos passaram então a dominar o repertório. Em outro momento, depois do golpe de 64, se inauguraria uma fase em que se procurava conciliar a releitura de momentos-chave da história brasileira (Zumbi, Tiradentes) com a efervescente música popular. Aí surgiram nomes como Edu Lobo, Caetano Veloso, Tom Zé, Gal Costa e Maria Bethânia.
Nessa fase, passaram pelo grupo atores como Paulo José, Juca de Oliveira, Lima Duarte, Dina Sfat, Fauzi Arap e Yara Amaral, entre outros. A partir de 67, um Núcleo 2 passaria a dar espaço a novos atores e a experiências que desaguariam no Teatro do Oprimido, corpo teórico e prático desenvolvido por Augusto Boal durante o exílio, a partir das experiências do Arena, e que hoje tem centros permanentes em Montreal e Paris. A repressão política que se seguiu ao golpe de 68 levou parte do grupo a se apresentar em outros países. A sala ficou na mão do Núcleo 2. Em 70, o grupo, como tal, se extinguiu.
O outro protagonista do teatro paulista nos anos 60 foi o grupo Oficina. Foi fundado, no final dos anos 50, por um grupo de estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco: José Celso Martinez Correa, Amir Hadad, Renato Borgui e Carlos Queiroz Telles. Nos anos 60, a trajetória do grupo se confundiu com a trajetória do diretor José Celso Martinez Correa, mais importante diretor da sua geração. Em poucos anos ele aprendeu , dominou e transformou a herança estética do teatro ocidental no século XX.
Dele foi aquela que é considerada por muitos críticos como a melhor montagem realista de nossos palcos, Os Pequenos Burgueses, de Máximo Górki (1963). O melhor Brecht também é dele. Pode-se escolher Na Selva das Cidades ou Galileu Galilei. Mas o marco de sua obra é a montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. Nessa montagem ele recuperou a tradição modernista traduzindo-a para o palco e deu origem (ou forma) ao chamado Tropicalismo, que teria repercussão nas artes plásticas, na música, no cinema e na literatura.
Com Roda Viva, texto de Chico Buarque de Holanda, José Celso e seu elenco tiveram de enfrentar a fúria do grupo paramilitar CCC que, com a complacência da polícia, espancou os atores da montagem (entre eles, Zezé Motta, Marília Pêra, Rodrigo Santiago e Jura Otero) e depredou a sala de espetáculos em que se apresentavam, o Teatro Ruth Escobar. Entre os atores que passaram por essas montagens podemos destacar Renato Borgui (protagonista de quase todas elas), Célia Helena, Raul Cortez, Ítala Nandi, Etty Frazer, Eugênio Kusnet (que transmitiu ao diretor e seus atores sua experiência e conhecimento do método Stanislavisky, que ele havia aprendido em sua Rússia natal), Cláudio Correia e Castro, Fauzi Arap, Beatriz Segall, Fernando Peixoto (também importante na dinâmica do grupo como assistente de direção e teórico) e Mauro Mendonça, entre tantos outros.
Gracias Senõr, fruto da convivência com o grupo americano Living Theater, foi o último espetáculo a ter grande repercussão de crítica e público. O processo de desagregação do grupo, fruto, entre outras coisas, da repressão policial e política, levaram à sua dissolução, em 1972. José Celso viveu então no exílio até 1979. Quando voltou ao Brasil, engajou-se numa luta pela recuperação da posse do espaço do teatro, depois pelo seu tombamento e por sua reforma (na verdade reconstrução, em outros moldes) com um projeto revolucionário, ainda que discutível, de Lina Bo Bardi e Edson Elito.
Ele só voltaria a dirigir outro espetáculo em 91 (As Boas, uma releitura de As Criadas, de Genet). O novo Teatro Oficina - ou Usina Uzona, como passou a se chamar - foi aberto em 93 com uma genial adaptação do Hamlet, de Shakespeare. A produtora e atriz Ruth Escobar colocou o Brasil no mapa da produção mundial, em duas frentes distintas. Por um lado, produziu espetáculos antológicos como Cemitério de Automóveis, O Balcão e Os Monstros, trazendo para trabalhar aqui artistas como Victor Garcia, Jean Genet, Jerome Savary e Fernando Arrabal. Sua outra atividade foi como produtora de festivais internacionais.
Em 72, por exemplo, ela apresentou para o público paulista Bob Wilson, com a histórica montagem de The Life And Times of Joseph Stalin. Seu Festival existe, intermitente, até os dias de hoje, e é o evento mais importante do gênero, no Brasil. Uma geração de dramaturgos surgiu entre o final dos anos 60 e o início dos 70. São nomes que estão produzindo até hoje parte do melhor teatro paulista - e portanto brasileiro: Plínio Marcos, Consuelo de Castro, Leilah Assumpção, Antônio Bivar, Zé Vicente, Mário Prata... Os anos 70 foram anos de um teatro de resistência à ditadura. Produziu-se uma farta literatura dramática que tratava metaforicamente da questão política. Renato Borghi, Gianfrancesco Guarnieri e Fernando Peixoto foram os baluartes desse teatro.
Paralelo a essa produção, um grupo de jovens desenvolveu uma dramaturgia marcada pelo humor e pelos temas mais leves. O grupo Fanta Maria e Pandora, integrado pelos autores, diretores e atores Miguel Magno e Ricardo de Almeida, é um bom exemplo. Outro é o Royal Bixiga's Company, formado por uma turma da EAD - Ney Latorraca, Francarlos Reis, Ileana Kwasinsky, Jandira Martini etc. O Pod Minoga deu espaço para uma geração de comediantes como Flávio de Souza, Carlos Moreno, Yara Janra e Mira Haar, que levaram, para suas carreiras solo, uma característica de seu líder e diretor Naum Alves de Souza: a capacidade de transitar com igual talento pela dramaturgia, direção, cenografia, figurinos etc. Naum se destacou também como dramaturgo, com uma série memorialística irretocável.
Destacam-se também, a partir dessa época, os nomes de Fauzi Arap, C.A. Sofredinni, Flávio Márcio, Maria Adelaide Amaral... O fato mais importante dos anos 70 foi a fundação do grupo Macunaíma, depois mudado para CPT, sob a direção de nosso mais importante diretor, Antunes Filho. O espetáculo Macunaíma (1977) é um marco comparável à montagem de Vestido de Noiva por Ziembinsky (1943) e O Rei da Vela por Zé Celso (1968). Viajou o mundo e deu origem a uma busca estética e ética que se mantém até hoje, no espaço garantido pelo Sesc para o CPT. A liberalização do regime, no final dos anos 70, não trouxe a avalanche de obras-primas que se supunha ter sido impedida pela censura de chegar aos palcos.
Na verdade, poucos textos conseguiram traduzir em grande arte a noite escura da ditadura. As duas obras-primas no gênero são Rasga Coração, de Oduvaldo Viana Filho e Sinal de Vida, de Lauro César Muniz. Em outro registro pode-se destacar a poética Patética, de João Ribeiro Chaves Neto. A diversidade marca o teatro paulista dos anos 80 e 90, como aliás todas as Artes em qualquer ponto do planeta. Pode-se destacar entre tantas coisas, a aparição da figura carismática de Gerald Thomas e com ela a questão da pós-modernidade e um apuro técnico inédito. Na dramaturgia, vários nomes surgiram, mas Luís Alberto de Abreu é quem tem realizado a obra de maior fôlego.
A citação de nomes poderia ser interminável. Mais vale dizer que São Paulo hoje tem uma média de 60 espetáculos em cartaz por semana, sem contar os espetáculos infantis. Que somos parada obrigatória para quantos grupos internacionais estejam em turnê pela América Latina. E que do teatro mais comercial, ao mais experimental, há mercado e espaço.
Por Aimar Labaki
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