sábado, 3 de julho de 2010

O TEATRO E SEU DUPLO – ANTONIN ARTAUD

BIOGRAFIA

Antonin Artaud nasceu em Marselha, no dia 4 de setembro de 1896, e faleceu em Paris, no dia 4 de março de 1948. Foi um poeta, ator, roteirista e diretor de teatro francês.

Em 1937, Antonin Artaud, devido a um incidente, é tido como louco. Internado em vários manicômios franceses, cujos tratamentos são hoje duvidosos, ele é transferido após seis anos para o hospital psiquiátrico de Rodez, onde permanece ainda três anos.

Em Rodez, Artaud estabelece com o Dr. Ferdière, médico-responsável do manicômio, uma intensa correspondência. Uma relação ambígua se estabelece entre os dois: o médico reconhece o valor do poeta e o incentiva a retomar a atividade literária mas, julgando a poesia e o comportamento de seu paciente muito delirante, ele o submete a tratamentos de eletrochoque que prejudicam sua memória, seu corpo e seu pensamento.Existe aqui um afrontamento entre dois mundos, o da medicina e razão social e o do poeta cuja razão ultrapassa a lógica normal do “homem saudável”.

As cartas escritas de Rodez são para Artaud um recurso para não perder sua lucidez. Elas revelam um homem em terrível estado de sofrimento, nos falando de sua dor através de uma escritura mais íntima e mais espontânea. São os diálogos de um desesperado com seu médico e através dele com toda a sociedade.
“Não quero que ninguém ignore meus gritos de dor e quero que eles sejam ouvidos”.
Para Artaud, o teatro é o lugar privilegiado de uma germinação de formas que refazem o ato criador, formas capazes de dirigir ou derivar forças.

Em 1935 Artaud conclui o "Teatro e seu Duplo" (Le Théâtre et son Double), um dos livros mais influentes do teatro deste século. Na sua obra ele expõe o grito, a respiração e o corpo do homem como lugar primordial do ato teatral, denuncia o teatro digestivo e rejeita a supremacia da palavra. Esse era o Teatro da Crueldade de Artaud, onde não haveria nenhuma distância entre ator e platéia, todos seriam atores e todos fariam parte do processo, ao mesmo tempo.

Em Rodez, além de suas cartas (lettres au docteur Ferdière) ele elabora uma prática vocal, apurada dia a dia, associada à manifestações mágicas. A voz bate, cava, espeta, treme, a palavra toma uma dimensão material, ela é gesto e ato.

Artaud volta a Paris em 1946, onde dois anos depois é encontrado morto em seu quarto no hospício do bairro de Ivry-sur-Seine. Neste período, além de uma importante produção literária ele desenha, prepara conferências e realiza a emissão radiofônica "Para acabar com o juízo de Deus" (Pour en finir avec le jugement de dieu), onde sua vontade expressiva se alia a um formalismo cuidadoso.

Se nos anos 30 o teatro para Artaud é “o lugar onde se refaz a vida”, depois de Rodez ele é essencialmente o lugar onde se refaz o corpo. O “corpo sem órgãos” é o nome deste corpo refeito e reorganizado que uma vez libertado de seus automatismos se abre para “dançar ao inverso”.

“A questão que se coloca é de permitir que o teatro reencontre sua verdadeira linguagem, linguagem espacial, linguagem de gestos, de atitudes, de expressões e de mímica, linguagem de gritos e onomatopéias, linguagem sonora, onde todos os elementos objetivos se transformam em sinais, sejam visuais, sejam sonoros, mas que terão tanta importância intelectual e de significados sensíveis quanto a linguagem de palavras.”

O seu trabalho ainda inclui, ensaios e roteiros de cinema, pintura e literatura, diversas peças de teatro, inclusive uma ópera, notas e manifestos polêmicos sobre teatro, ensaios sobre o ritual do cacto mexicano peyote entre os índios Tarahumara (Les Tarahumaras), aparições como ator em dois grandes filmes e outros menores. Artaud escreveu: "Não se trata de assassinar o público com preocupações cósmicas transcendentes. O fato de existirem chaves profundas do pensamento e da ação segundo as quais todo espetáculo é lido é coisa que não diz respeito ao espectador em geral, que não se interessa por isso. Mas de todo o modo é preciso que essas chaves estejam aí, e isso nos diz respeito" - em TEATRO E SEU DUPLO.
Teatro: Um Ato Total

Circunavegar esse mar mediterrâneo do universo artaudiano veio para mim como um duplo desafio: por um lado, elucidar a concretude da proposta do Teatro e seu Duplo, de Antonin Artaud, em relação à linguagem total do teatro; por outro lado, resgatar a obra de Artaud como o trajeto de um visionário que não teve medo de se adentrar nos recônditos mais profundos da vida (da sua e da realidade de sua época) e, de maneira particular, do teatro, sendo ele mesmo homem teatro, para ressurgir em OBRA VIVA, legando-nos um marco para a Estética Teatral Contemporânea. Já dizia Barrault: "De longe, a coisa mais importante que se escreveu acerca do teatro no século XX".

É necessário considerar que não pretendo transformar a obra de Artaud num receituário para a arte cênica. O legado que ele nos deixa não é uma geografia que pode ser colonizada, mas pontos de partida, indicações de caminhos, em que idéias suscitam idéias, em que a obra transcende a si mesma. Esse homem-teatro é, em si, uma obra de arte e, portanto, estará sempre fora de alcance, nunca poderá ser esgotado. Como diz o próprio Artaud: "A verdadeira beleza nunca nos atinge diretamente. E é assim que o pôr- do- sol é belo por tudo aquilo que nos faz perder" (...) idéias claras são idéias mortas e acabadas." Assim, pretendo evidenciar algumas sinalizações que Artaud nos apresenta, a partir de suas críticas à cultura, ao teatro de sua época e de suas epifanias para o teatro, enquanto ato total: "uma projeção escaldante de tudo aquilo que pode ser retirado de um gesto, uma palavra, um som, uma música e da combinação entre eles."

Este artigo é um resumo da minha dissertação de mestrado, na USP, São Paulo, cujo tema foi "Em busca de uma Escritura Cênica a partir de Artaud". Para uma melhor compreensão da obra de Artaud e da sua proposta de teatro como ato total, o texto é dividido em três partes: Cultura - Vontade de Potência; A Necessidade Implacável da Criação; A Nova Linguagem do Teatro.

O meu encontro com Artaud veio confirmar a trajetória que eu já vinha percorrendo, na buscar de recuperar o verdadeiro sentido do teatro enquanto um ritual que exige de seus participantes rigor, disciplina, determinação, coragem, generosidade. Um ritual que é ação e que acontece no tempo e no espaço da cena e que só pode viver em cena, onde passado, presente e futuro se unem naquele instante preciso do ato total. Um teatro que saiba nomear e dirigir as sombras, trazendo à luz do dia verdades que, de outra forma, permaneceriam ocultas. Um teatro que fale a sua linguagem concreta, linguagem física, linguagem materializada no corpo e na voz dos atores e em tudo o que acontece em cena, evocando um universo, onde tudo assume um sentido, um mistério, uma alma.

É esse o caminho que percorro na minha pesquisa e investigação teatral. Caminho que percorro por uma necessidade vital e que recebi de herança ancestral, legada por tantos outros sonhadores e fundadores de mundos para além de mundos conhecidos. E que esse caminho possa, por sua vez, ser herança para tantos outros que estão e virão.

"E que com o hieróglifo de uma respiração, eu possa encontrar uma idéia do teatro sagrado". ( Artaud )

Cultura: Vontade de Potência

Nomear e dirigir as sombras

"Para o teatro, assim como a cultura, a questão continua a ser a de nomear e dirigir as sombras". Artaud deseja mostrar a base orgânica das emoções e a materialidade das idéias nos corpos dos atores, a transformação das concepções em eventos inteiramente "materiais", onde as facetas obscuras do "espírito" são reveladas numa projeção real, material. Captar o "manas", as forças que dormem em todas as formas, como os velhos tótens, que captam, dirigem e derivam forças e a efígie que tem sua sombra que a duplica, assim como o escultor que, enquanto modela, acredita liberar uma espécie de sombra cuja existência dilacerará seu repouso. Não uma contemplação das formas por si sós, mas uma identificação mágica com essas formas, como a pedra que se anima porque foi tocada como se deve.

Uma obra de arte só é viva, na medida em que ela comunica algo além da sua simples aparência. Esse algo além é a sua sombra que a duplica, ou seja, quando o artista é capaz de inscrever naquilo que ele molda o sopro de vida que o inspirou, como o Deus que moldou o homem com o barro da terra, depois o sopra (o sopro vital) tornando-o um ser vivente.

O sopro é esse exercício de uma força criadora, que apreende aquilo que, do interior, se inscreve na exterioridade - as aspirações secretas, os fluxos secretos do desejo. Uma representação comovente habitada por marcas de sua própria história, escrita em sua própria carne. Captar essa verdade não é uma prática insignificante, mas o exercício de uma inspiração quase divinatória.

Assim, só atingimos com a nossa arte o ser do homem, quando nos comunicamos em um outro plano, diferente daquele da realidade cotidiana, superficial e inútil. Esse mundo arquetípico, onde se movimentam as aspirações, sonhos, desejos, sentimentos, medos, angústias... as profundezas, as regiões subterrâneas do nosso ser humano universal. Lutas que se travam nas sombras e se fazem revelação, esse invisível que se torna visível, como dizia Klee: "a arte não reproduz o invisível, mas torna visível".

Quando deparamos com alguma obra de arte que carrega em si essa potência, essa sombra, ela nos atinge, nos perturba, nos encanta, nos transfigura. Não saímos dali como entramos, algo foi acrescentado. É o tempo privilegiado em que não apenas nos sentimos existir, mas onde passamos por uma experiência de recuperação material do ato de existir. Ao ir à exposição de Camile Claudel (para citar um exemplo) vivi essa experiência. A sua obra possui uma força misteriosa e ativa, abriga um fogo vital que jorra do próprio fundo da sua natureza, exalando de si mesma seu encantamento e em que a alma, como que com um hálito, cria seu próprio corpo. Uma obra capaz de nos transtornar e nos envolver.

Artaud nos diz que "se falta enxofre à nossa vida, quer dizer, se lhe falta uma magia constante, é porque nos apraz contemplar os nossos atos e nos perdermos em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, ao invés de sermos impulsionados por eles", ou seja, falta à nossa vida força, energia, vibração, intensidade e estamos mergulhados no marasmo. Artaud critica esse homem civilizado, bem formado pelo sistema, que pensa por sistemas e formas convencionais, fechadas, sendo que a vida é tensão, é dinâmica, em que o pensamento, a palavra e a ação buscam a sua unidade conflitual.

O verdadeiro teatro também tem suas sombras, que rompem com suas limitações, duplica as formas, se expande, traz à luz aquilo que recusamos ver, rompe a linguagem para tocar a vida. Só que a "nossa idéia petrificada do teatro encontra-se com nossa idéia petrificada de uma cultura sem sombras onde, seja para que lado for que se volte, nosso espírito só encontra o vazio, quando na verdade, o espaço está cheio".

"É paradoxal que em nossas vidas,
o vazio possa ser repleto,
o negativo possa ser afirmativo,
o vácuo possa ser o lugar em que a maioria das coisas acontecem."
( Lao Tsé )

Cultura em Ação

Artaud propõe uma cultura que seja inseparável da vida. A ação do homem inventa o homem, no conflito com o destino. Uma cultura que se constrói continuamente e que não dá para se encerrar e se fechar em livros "sobre a cultura." Uma cultura em vida, em movimento, em ação, que se faz e se refaz nesse "vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço - esse meu mundo dionisíaco do eternamente criar a si mesmo, esse meu para além do bem e do mal, sem alvo... vontade de potência."

Nietzsche fala dessa vontade de potência como um jogo de forças e ondas de forças, que é, ao mesmo tempo, uno e múltiplo, "aqui acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando, um mar de forças tempestuando e ondulando em si próprias, eternamente mudando, eternamente recorrentes, com descomunais anos de retorno, com uma vazante e enchente de suas configurações, partindo das mais simples às mais múltiplas, do mais quieto, mais rígido, mais frio, ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditório consigo mesmo, e depois outra vez voltando da plenitude ao simples, do jogo de contradições de volta ao prazer da consonância."

Essa vontade de potência se traduz, no teatro artaudiano, como um jogo de envolvimento e afastamento mútuo, em que o constituído se confunde com o constituinte, onde nada pode aparecer como acabado, como claro e distinto, como realizado, em que nenhuma transformação e nenhum acontecimento é definitivo. Um conflito permanente entre o uno e o múltiplo, cujas operações simbólicas e físicas transbordam e lutam entre si.

O sábio Heráclito de Éfeso já acreditava num mundo em perpétua mudança, em eterno vir-a-ser, onde tudo se torna o contrário de si mesmo, onde as transformações no mundo derivam da interação dinâmica e cíclica dos opostos: o dia vira noite, o inverno, primavera; o doce, amargo; o pequeno, grande; o grande diminui; o quente esfria; o frio se aquece...Seu princípio universal era o fogo, um símbolo para o contínuo fluxo e a permanente mudança em todas as coisas. Imagem do fogo que se acende e se apaga na mesma medida e que pode ser destruição, mas, também, criação.

Um teatro contra o que na vida há de constituído, de manifesto, e que pretende para si a eficácia da magia e dos ritos. O olho do artista, como diz Thomas Mann, "tem um viés mítico sobre a vida; por isso, precisamos abordar o mundo dos deuses e demônios - o carnaval de suas máscaras e o curioso jogo do "como se', no qual o festival do mito vivo abole todas as leis do tempo, permitindo que os mortos voltem à vida e o "era uma vez" se torne o próprio presente - com o olho do artista.

" E Joseph Campbell completa: "a máscara em um festival primitivo é venerada e vivenciada como uma verdadeira aparição do ser mítico que ela representa - apesar de todo mundo saber que foi um homem quem fez a máscara e que é um homem que a está usando. Mas, durante o tempo do ritual do qual a máscara faz parte, aquele que a estiver usando é também identificado com o deus.

" Mas essas festas religiosas celebradas nos rituais primitivos não acontecem em total ilusão. Há uma consciência de que as coisas "não são reais." Campbell esclarece essa questão com uma citação de Marett : " o selvagem é um bom ator que sabe envolver-se no seu papel, como uma criança brincando e também como uma criança, é um bom espectador que pode ficar morto de medo de um rugido que sabe muito bem não ser de um verdadeiro leão."

É essa vida que se desenvolveria sob o signo da verdadeira magia, que Artaud quer evocar, advertindo-nos que a intensidade da existência está intacta e que, por medo, vivemos no estado de impotência em possuí-la. Por isso nos propõe revermos nossas idéias sobre a vida, numa época em que nada mais adere à vida.

Colocamos a cultura em uma espécie de Panteão: de um lado fica a cultura (idolatrada em seus panteões) e, de outro, a vida. Não entendemos que a verdadeira cultura é um meio apurado de compreender e exercer a vida, onde o mundo não é condenado e evitado como um pecado, mas voluntariamente assumido como um jogo ou dança, onde o espírito brinca.

Ele faz uma crítica à idéia ocidental da arte, em que arte e cultura não podem andar juntas, onde a arte coloca o espírito numa atitude separada da força, sendo que a verdadeira cultura age por sua exaltação e sua força. No teatro oriental, diz Artaud, "as formas apoderam-se de seu sentido e de suas significações em todos os planos possíveis; ou se preferirem, suas conseqüências vibratórias não se fazem sentir num único plano, mas em todos os planos do espírito ao mesmo tempo", sendo capaz de nos transtornar e encantar e não se detendo nos aspectos exteriores das coisas, mas trazendo à luz do dia, através de gestos ativos, essa parte de verdade oculta sob as formas em seus encontros com o Devir.

É nesse espaço virtual, diz Artaud, que se instaura o teatro. Um jogo ligado ao imprevisível onde as regras nascem dele mesmo, nascem da lógica do acaso, onde cada lance lança suas regras, abolindo as certezas, abrindo novas questões, num olhar sempre inaugural sobre o mundo, emergindo no perigo, no desejo invencível do vir-a-ser: "manifestar e ancorar inesquecivelmente em nós, a idéia de um conflito perpétuo e de um espasmo onde a vida se dilacera a cada minuto, onde tudo na criação se ergue contra nosso estado de seres constituídos".

É a roda infinita do Devir, na qual o caos é condição necessária da produção da forma. Desconstruir, descentrar, desintegrar, construir, equilibrar, integrar. O ir-se abrindo e se metamorfoseando. Ciclo de caos e cosmo em devir permanente. Dioniso e Apolo. "Teremos chegado muito a favor da ciência estética se chegarmos à certeza imediata da introvisão de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações", diz Nietzsche.

O elemento apolíneo relacionado à Poíesis - estado de alma. Saber - fazer poético.Gozo oriundo da obra feita pela própria pessoa, possibilitando uma tentativa de combate para um conhecer deste mundo, distinto do conhecimento oferecido pela ciência. O elemento dionisíaco relacionado à Aísthesis - gozo estético do ver e reconhecer. Circula pela sensibilidade, operando sobre o conceito do conhecimento pelos sentidos, privilegiando o sentimento e a sensação. A experiência da densidade do ser, como diz Sartre. A atividade da aísthesis (elemento dionisíaco) pode e deve levar à poíesis (elemento apolíneo), na medida em que o ato criativo pode e tem de abandonar sua atitude puramente contemplativa e participar da criação da obra em seu conteúdo e forma.

Uma matéria em ebulição na direção de um possível. A busca de dar forma (simbolizar) àquilo que não tem forma (o afeto, os sentimentos, as emoções). O desvelar desses movimentos obscuros, em que o invisível ganha visibilidade, em que as produções do inconsciente (do ato embriagador da criação) irão materializar-se no poético (eficácia simbólica). O partir do sensível, do espaço cênico, do caos dionisíaco, para se chegar ao apolíneo, ao matemático, à partitura. A cultura é "esse sem espaço nem tempo" ligada ao inconsciente, produzindo cataclismas, que ressurgirão com redobrada energia, incitando - nos a retornar à natureza, a reencontrar a vida.

Contra a cultura da Europa que supervaloriza a razão, Artaud vem propor a união entre corpo e espírito, numa visão do homem com um ser integral, orgânico e não multifacetado. O homem construindo a cultura e a cultura transformando o ser do homem em sua profundidade. Como nos diz Vera Lúcia Felício: "uma cultura que não é escrita, pois, escrever é impedir o espírito de se movimentar no meio das formas como uma vasta respiração", mas que vai sendo inscrita nesse movimento incessante da vida, desaparecendo a dicotomia homem e natureza, vida e regras de viver.

É no México que Artaud vai encontrar aquilo que ele chama de cultura viva: "ligada ao sol, perdida nas correntes da lava vulcânica, vibrante no sangue índio, há no México a realidade mágica de uma cultura, cujas chamas de pouca coisa precisariam para se reacender materialmente. Falando do México, não é por acaso que sou levado a falar do fogo. Se toda a civilização começou pelo fogo, a idéia do fogo está subjacente e alimenta sempre toda a realidade mexicana. O fogo, imagem da civilização, permaneceu no México mais que uma imagem através dos tempos, incorporando-se ativamente nos Mitos pelos quais a civilização do México manifesta a sua vivacidade".

Para Artaud, a cultura tem que ser em carne viva, queimar organismos. Ele diz que não há cultura sem fogueiras e o México parece deter o meio de reavivar sem fim fogueiras de culturas vivas. As imagens míticas dos quatro elementos: fogo, céu, água, terra parecem ser intrínsecas ao México, "nelas está todo o México ao nu " (...) "e assim como toda a matéria existente passa num dado momento por esses quatro pontos, assim como a física moderna reencontrou energias e princípios que não são outros, em linguagem clara, senão símbolos da antiga alquimia, e ao Mercúrio corresponde o movimento, ao Enxofre a energia, ao Sal a massa estável, assim também a atividade dos princípios manifesta em imagens no México, os seus poderes perpetuamente renovados".

A ida ao México permite perceber que não há civilização nem cultura válidas sem a idéia aceita e partilhada de um mito que continua a vivificar os organismos, permitindo.-lhes confrontar-se magnética e constantemente com símbolos universais. No México, o homem é visto não como separado da natureza, mas em uníssono com ela, com o universo e, que, se encontrando perto das forças da natureza, participa de seus segredos.

Da sua experiência com os Tarahumaras, Artaud nos diz que é falsa a idéia de que eles não tenham civilização, pois eles possuem a mais elevada idéia do movimento filosófico da natureza..."captaram os segredos deste movimento através de Números-Princípios, tal como Pitágoras o fez". Artaud descreve que diante de cada aldeia Tarahumara e nos quatro pontos da montanha, há uma cruz, que nada tem a ver com a cruz católica, mas representa o homem esquartejado no espaço, ou seja, o homem de braços abertos, ligado aos quatro pontos cardeais. Uma idéia ativa do mundo, uma idéia geométrica à qual a própria forma do homem está ligada.

"O que a cultura mexicana propicia é o restabelecimento da idéia de uma grande harmonia, onde espírito e matéria não são mais rivais" e uma civilização que põe o corpo de um lado e o espírito do outro arrisca-se, como nos diz Artaud, a "ver quebrarem-se os laços que unem estas duas realidades dissemelhantes".

O artista é chamado a ser um Tarahumara, aquele que abriga no fundo do seu coração o coração de sua época...aquele que é porta-voz...aquele que está ligado, que possui uma percepção mais apurada da vida, que não apenas vê, mas tem visão, um visionário. E que no ato de realizar a sua arte dá vazão às angústias de sua época, interferindo neste mundo e transformando-o, através da recuperação dessa magia, dessa comunicação constante entre o interior e o exterior, o ato e o pensamento, a matéria e o espírito.

Artaud é contra essa cultura onde apenas as pessoas ditas cultas participam, pois uma civilização assim "já não tem nada a ver com as suas fontes primitivas de inspiração", perdeu a sua magia, a sua ligação com a profundidade da vida.

É no teatro que Artaud busca a recuperação dessa verdadeira cultura: "O teatro pode ajudar-nos a recuperar uma cultura e dar-nos dela imediatamente os meios: a cultura não está nos livros, mas nas forças que emanam dos livros, ela está nos nervos, nos órgãos sensíveis, numa espécie de manas que dorme e que pode mostrar o espírito imediatamente na atitude de receptividade a mais alta, de receptividade total... este manas, o teatro tal como eu o concebo, desperta-o..."

Teatro Ocidental e Teatro Oriental

Bali - Dança Ketchak

É no contato com o teatro de Bali que Artaud vai encontrar aquilo que mais se aproxima à sua busca do verdadeiro sentido da cultura e do teatro. Assim como a cultura no ocidente está ligada à instrução acadêmica, desligada da essência do ser e da vida que o circunda, o teatro seguindo esta mesma direção, encontrava-se em estado de estagnação psicológica e literária (era visto como um ramo da literatura), incapaz de nos transtornar e nos encantar.

 "A enfermidade espiritual do ocidente, que é o lugar por excelência onde foi possível confundir a arte com o estetismo, está em pensar que poderia existir uma pintura que só servisse para pintar, uma dança que seria apenas plástica, como se alguém tivesse desejado cortar as formas da arte, separá-la de todas as ligações com todas as atitudes místicas que podem assumir ao se confrontarem com o absoluto." (...)

"É por não se deter nos aspectos exteriores das coisas num único plano que o teatro oriental não se limita ao simples obstáculo e à aproximação sólida desses aspectos com os sentidos; é por não parar de considerar o grau de possibilidade mental de que se originam que ele participa da poesia intensa da natureza e conserva suas relações mágicas com todos os graus do magnetismo universal."

Para Artaud o uso da palavra no teatro ocidental não contém uma força ativa, não rompe a aparência para se chegar ao espírito, mas fica somente no nível exterior de um pensamento perfeito que se degrada ao se exteriorizar. Já no teatro balinês sente-se um estado anterior à linguagem e que pode escolher sua linguagem: música, gestos, movimentos, palavras. E essa é a linguagem expressiva, diz-nos Rousseau..."aquela em que o signo diz tudo antes que se fale" (...) "onde o objeto oferecido, antes da palavra, acorda a imaginação, excita a curiosidade, mantém o espírito em suspenso".
Bali - Dança Barong
 
O teatro oriental é, para Artaud, a concretização dessa linguagem - "o saber conservar um certo valor expansivo das palavras, uma vez que, na palavra, o sentido claro não é tudo e sim, a música da palavra que fala diretamente ao inconsciente". Uma linguagem não da palavra articulada, discursiva (como acontece no ocidente), mas uma linguagem de gestos, atitudes e signos. Uma linguagem que não se define a não ser pelas possibilidades da expressão dinâmica e no espaço, em oposição às possibilidades da expressão pela palavra dialogada. Uma palavra que não será mais conotada mas detonada. Ele propõe uma linguagem que circule pela sensibilidade e que, abandonando as utilizações ocidentais da palavra, faz das palavras, encantações: "ela emite uma voz, utiliza vibrações e qualidade de voz; faz os ritmos se repetirem apaixonadamente; calca sons; procura exacerbar, exaltar, encantar, deter a sensibilidade".

Através desta linguagem, que assume uma nova espécie de presença e, através dos movimentos dos atores, criamos uma "poesia natural", uma "poesia no espaço", a verdadeira poesia sensível do teatro. Aquela que utiliza todos os meios de expressão utilizáveis em cena, como a música, a dança, artes plásticas, pantomina, gestos, entonações, iluminação, cenário. Isso na medida em que eles se revelam capazes de aproveitar as possibilidades físicas imediatas que a cena lhes oferece para substituir as formas imobilizadas da arte por formas vivas e ameaçadoras - "tentação física da cena".

Ao falar do Teatro Ocidental, Artaud afirma a perda da nossa sensibilidade para com a manifestação do sagrado, onde o mundo profano é transcendido, onde se torna possível a comunicação com os deuses: "perdemos aparentemente nossa sensibilidade para com essas encarnações cósmicas".O teatro ocidental, atado às suas preocupações cotidianas, esqueceu a teatralidade dos monstros, o puro frêmito dramático derivado da simples vista da monstruosidade, esse medo metafísico (quando os nossos apoios normais são dissolvidos, quando se coloca em cheque a nossa segurança, "quando perdemos a terceira perna do nosso tripé estável") e ancestral (respeito pela manifestação de algo).

O teatro para Artaud, deve ser um ATO TOTAL, sendo, a vida, o lugar por excelência, onde essa linguagem se enraíza: "eu não concebo a obra como desligada da vida" e, o palco, o lugar em que, de maneira orgânica e profunda, essa linguagem dinâmica e objetiva se inscreve (o significado que vai nascer a partir da sua construção - materialidade do significante), tornando a encenação uma linguagem particular.

Um teatro que nos reata com a vida em lugar de nos separar dela, pois é um teatro provocador, revelando tudo que a vida dissimula ou não pode expressar. Só assim, poderemos "acreditar num sentido de vida renovado pelo teatro onde o homem torna-se senhor daquilo que ainda não existe, e o faz nascer". Um teatro que se propõe a ser renovação da vida, renovação do homem...do homem integral e não só do homem racional: "acima de tudo precisamos acreditar no que nos faz viver e que algo nos faz viver". Um teatro que seja como "terra do fogo, lagunas do céu, batalha dos sonhos" e que nos levará a uma aproximação com a vida ardente, a vida em estado puro, onde poderemos encontrar alguma coisa de verdadeiramente essencial no ser.
A Necessidade  Implacável da Criação
A necessidade implacável da criação ou necessidade implacável de afirmação da vida. Ninguém mais do que Artaud lutou incansavelmente contra a imensa pressão da morte. Suas dificuldades se transformaram em desafios, suas angústias e dores em uma busca incessante, seu aprisionamento em procura de uma saída. Em sua dificuldade de se expressar, Artaud deixa uma obra que vem revolucionar a cultura e a arte de seu tempo, só valorizada anos mais tarde; em suas angústias e dores, Artaud liberta suas energias latentes e cria em função dessa revolta; em seu aprisionamento, Artaud luta desesperadamente por uma transformação de todas as estruturas da vida. Uma vida espontânea e uma cultura fascinante, movida por uma força de unificação que se reproduziria a todos os níveis e a todos os instantes.

É com essa mesma força de afirmação da vida inerente em Artaud, que ele vai construir as bases materiais de seu teatro, ou seja, o teatro e seus duplos: a peste, a alquimia, a crueldade.

A Peste

O teatro para Artaud deve ter a força de uma epidemia; deve ser uma combustão que vai trazer à tona, a essência do ser; deve ser um ato de entrega total à essa necessidade inelutável de criação contínua. Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos e impõe às coletividades reunidas, à sua volta, uma atitude heróica e difícil. Artaud deseja que o teatro se abata entre uma multidão de espectadores com o mesmo e pavoroso horror da peste bubônica, a peste negra da Idade Média. Um teatro vivido a partir do epidêmico, da peste epidêmica.

Diante da morte (de uma destruição total) não tenho mais voz, mais vez, mais estação, mais porto seguro. A febre interior aponta que estou em combustão, estou expelindo como um vulcão, como uma tempestade orgânica, como lava, erupção. Uma espécie de exorcismo, de purgação. O organismo descarrega sua podridão - ou você vive ou você morre - não há meio termo. Uma crise completa após cuja passagem resta apenas a morte ou a purificação total.

"Também o teatro é um mal porque é o equilíbrio supremo que só se pode conseguir através da destruição. Ele requer, do espírito, a participação num delírio que intensifica suas energias".O palco, lugar do mal absoluto, mas também o crivo da vida. Anárquico e epidêmico, produz formas, ações, sentimentos e idéias num confronto originário de vida e morte. Reabre o espaço virtual das formas e dos símbolos, alimentando e expandindo os conflitos, onde a realidade não se apaga, mas também não se desliga do fluxo produtor da vida.

O teatro é como a peste, não só por atuar sobre a coletividade e por transtorná-la, mas porque existe no teatro, como na peste, algo de vitorioso e de vingativo ao mesmo tempo: o homem rebelado contra a fatalidade e que, em lugar de padecê-la, se insurge contra ela e cria em função dessa revolta. "A ação do teatro como a da peste é benfazeja, pois levando os homens a se verem como são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, a hipocrisia; a ação do teatro sacode a inércia asfixiante da matéria; e revelando para as coletividades seu próprio poder obscuro, sua força oculta, ela as convida a assumir uma atitude heróica e superior, que, sem isso, jamais assumiriam".(...) "o teatro existe para furar abcessos coletivamente, pois vamos ao teatro para reencontrarmos aquilo que temos, não propriamente de melhor, mas de mais raro e mais crivado". Artaud nos fala que esse teatro possibilitará a ressurreição de uma força espiritual que cresce em intensidade, em densidade e se afirma à medida que se propaga.

Dele sairemos não como espectadores passivos que se limitam a um olhar artístico sobre as formas, mas como supliciados que se queimam e que fazem signos em suas fogueiras. Ou seja, a função do teatro é perturbar o espectador para que ele, saindo do marasmo a que foi induzido pela cultura (ocidental), possa reencontrar sua essência profunda e sua real capacidade de criação.

A Crueldade

Contra um teatro de divertimento, de entretenimento "digestivo", Artaud nos propõe um teatro que busque alcançar as regiões mais profundas do indivíduo, agindo sobre ele, como as vibrações de uma música capaz de entorpecer a serpente. "Ela se dirige diretamente aos órgãos da sensibilidade nervosa, assim como os pontos de sensibilização da medicina chinesa incidem sobre os órgãos sensíveis e as funções diretrizes do corpo humano" (...) "um ambiente de luzes e de ruídos criados por dispositivos especiais, uma palavra que escapa no momento preciso, pode enlouquecer um homem, deixá-lo louco. Tudo isso para voltar à idéia de que o teatro atua, basta saber manejá-lo".(...) "um teatro onde as formas, os sentimentos, as palavras compõem a imagem de uma espécie de turbilhão vivo e sintético, no meio do qual o espetáculo toma o aspecto de uma verdadeira transmutação".

Foi a revelação das forças misteriosas que comandam o universo, através de seus estranhos movimentos e roupagem hierática, a música miraculosa que acompanha suas danças, a presença de força cósmica em seus gritos inarticulados, que fizeram da descoberta dos atores-bailarinos balineses um acontecimento decisivo na vida de Artaud e o levaram a compreender a verdadeira natureza do teatro como instrumento potencial para a redenção da humanidade..."não sou um daqueles que julgam necessária a mudança da civilização para que o teatro mude: creio, porém, que o teatro, utilizado no sentido mais alto e mais difícil de todos, tem o poder de influenciar a natureza e o desenvolvimento das coisas".

Na concepção de Artaud, esse teatro, cujas forças cósmicas, manifestadas por meios corporais que alcançam e tocam as energias físicas não-verbais e subconscientes das massas, é o que ele intitula Teatro da Crueldade. Artaud deixa claro que a expressão Teatro da Crueldade não se refere a sadismo, a sangue, pelo menos de modo exclusivo. Não é um culto ao terror. O teatro da Crueldade é, antes de tudo, extremamente violento contra nós mesmos. Trabalha o auto - desnudamento, nos transforma, exige que nós nos reformulemos, "jorra sangue metaforicamente", diz Vera Lúcia Felício.

E no plano de representação, "não se trata da crueldade que infligimos um ao outro, cortando mutuamente nossos corpos, serrando nossas anatomias pessoais, ou como imperadores assírios, mandando uns aos outros, pelo correio, pacotes de orelhas humanas, narizes ou narinas bem cortadas, mas daquela crueldade muito mais terrível e necessária que as coisas podem exercer sobre nós. Não somos livres. Os céus ainda podem cair sobre nossas cabeças. E o teatro existe, em primeiro lugar, para nos ensinar isso".

Como Artaud, não podemos negar que a vida, naquilo que ela tem de devoradora, de implacável, se identifica com a crueldade. E isso não somente no plano físico e visível, onde a crueldade está por todo lado, mas também e, principalmente, no plano invisível e cósmico, onde o simples fato de existir, com a imensa soma de sofrimentos que isto supõe, aparece como uma crueldade... "uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, rigor cósmico e necessidade implacável, no sentido de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido dessa dor de necessidade inelutável, fora da qual a vida não saberia exercitar-se; o bem é desejado, ele é resultado de um ato, o mal é permanente.

Quando cria, o Deus oculto obedece à necessidade cruel da criação que se impõe a si mesma, e assim ele não pode deixar de criar, portanto não pode deixar de admitir, no centro do turbilhão voluntário do bem, um núcleo do mal, cada vez mais reduzido. E o teatro, no sentido de criação contínua, de ação mágica inteira, obedece a essa necessidade. Uma peça onde não exista essa vontade, esse apetite de vida cego, capaz de passar por cima de tudo, visível em cada gesto e em cada ato, e do lado transcendente da ação, será uma peça inútil e fracassada".

Assim, o teatro, na medida em que pára de ser uma arte puramente digestiva e de divertimento fácil, em que volta a ser ativo e reencontra os poderes da ação direta sobre a sensibilidade e, através da sensibilidade, sobre o espírito, redescobrindo sua ligação com as forças, retoma "seu caráter perigoso e mágico, e se identifica com essa espécie de crueldade vital que é a base da crueldade" (...) "onde a criação e a própria vida só se definem por uma espécie de rigor, portanto, de uma crueldade básica que leva as coisas a seu fim inelutável, seja qual for o preço".

Artaud diz "crueldade", como poderia ter dito "vida" ou "necessidade", porque quer indicar que o teatro é ato e emanação eterna, que nele nada existe de fixo, identificando-o a um ato verdadeiro e que, portanto, é vivo, é mágico. Uma prática que se dá no presente, no imediato - o ato, e que deve ter a força de um acontecimento. "Vida- Manifestação: Teatro - manifestação e crueldade - rigor, pois intensidade, pois presença de vida."

" E esta "presença de vida", diz-nos Vera Lúcia Felício, "liga-se a catástrofes como tremores de terra, erupção de vulcões, de uma forma denominada de "Sublime", no sentido empregado por Artaud, quando diz que existe Sublime e Poesia no crime, na natureza de certos crimes de causas indescritíveis. Esta energia cósmica ou esta força encontrará sua expressão integral no teatro, de um modo marcante, nítido e poético, isto é, sob a forma de uma poesia mágica." A palpitação inata da vida, que colocará em movimento as grandes preocupações e as grandes paixões essenciais, as quais, "o teatro moderno cobriu sob o verniz do homem falsamente civilizado".
   
Máscara - teatro-dança balinês

Novamente aqui, o Teatro de Bali vem ser a concretização dessa linguagem palpitante da vida: "em Bali, os temas provêm, parece, das junções primitivas da Natureza que um Espírito duplo favoreceu. O que ele agita é o Manifestado. É uma espécie de Física primeira, da qual o Espírito nunca se afastou" (...) "suas realizações são talhadas em plena matéria, em plena vida, na plena realidade. Há nelas algo do cerimonial de um rito religioso, no sentido que extirpam do espírito de quem as observa toda idéia de simulação, de imitação barata da realidade". Em Bali, uma realidade fabulosa e obscura é acionada, soerguida, alcançada sem delongas e sem rodeios. Tudo isso, diz Artaud, "parece um exorcismo para fazer nossos demônios AFLUÍREM".

Alquimia O teatro, assim como a alquimia, nos permite reascender ao sublime, mas com drama, ou seja, antes de chegar à operação teatral de fazer ouro ou à operação de fazer ouro teatral, é necessário passar pelo embate de forças lançadas umas contra as outras, até chegar à decantação bruta, à pureza absoluta, concebida como "uma espécie de nota limite, apanhada em pleno vôo e que seria como a parte orgânica de uma indescritível vibração".

No teatro não haverá um material pronto, pré-parado, mas se desenvolverá e se construirá como uma matéria em ebulição na direção de um possível: "decantar e operar a transfusão da matéria, evocar a transfusão ardente e decisiva da matéria pelo espírito, fundindo todas as aparências em uma expressão única que devia ser semelhante ao ouro espiritualizado".

Pelo duplo, o teatro quer tornar sensível essa unidade múltipla da vida, onde será possível juntar a divisão, a contradição, o perigo, fazendo do teatro a "gênese da criação "- extraindo ordem da brutalidade ciclônica da natureza: no eterno retorno ao caos do princípio, a regeneração da vida, do mundo, do cosmo. "O verdadeiro teatro nasce, assim como a poesia, mas por outras vias, de uma anarquia que se organiza, após lutas filosóficas que são o lado apaixonado dessas primitivas unificações".

O Teatro da Crueldade e a Alquimia, ambos são artes virtuais..."assim como a alquimia, com seus símbolos, é como o Duplo espiritual de uma operação real, também o teatro deve ser considerado como o Duplo não desta realidade cotidiana e direta, da qual ele, aos poucos, se reduziu a ser uma cópia inerte". Artaud, ao dizer que "o teatro é um duplo da vida e a vida é um duplo do verdadeiro teatro", não está tratando da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas duma "espécie de frágil e turbulento núcleo no qual as formas não tocam". Assim, como diz Artaud, "o público acreditará nos sonhos do teatro com a condição de considerá-los, de fato, como sonhos e não como decalque da realidade; com a condição de que os sonhos permitam liberar no público essa liberdade mágica do sonho, que ele só pode reconhecer enquanto marcado pelo terror e pela crueldade."

O teatro que Artaud propõe nada tem a ver com teatro social que muda com as épocas, mas um teatro que atue, um teatro que não se detém no aspecto individual da vida, mas que tem como verdadeiro objetivo o criar mitos, possibilitando traduzir a vida sob seu aspecto universal e extraindo dessa vida imagens nas quais gostaríamos de nos reconhecer.

Como na alquimia, a cena no teatro (o ouro) não se encontra pronta, ela vai sendo construída no dinamismo da ação, extraindo as forças latentes, depurando-as até encontrar os gestos e sons primordiais, essenciais, a pedra filosofal, a síntese. Nesta cena não haverá desperdício, a exatidão com a qual cada ação será desenhada no espaço, a precisão com a qual cada traço será definido, uma série de pontos de partida e de chegada fixados exatamente de impulsos e contra-impulsos, os quais, permitirão, que a massa da vida se faça revelação.Um teatro que condensa, destila a essência mesma da realidade, portanto, um teatro de pesquisa...uma pesquisa dos sentidos eficazes do teatro. Eficazes naquele que realiza e eficazes naquele que olha, o espectador. O teatro balinês é, para Artaud, esse sentido eficaz, onde poesia e matemática, magia e ciência se tornam uma mesma realidade, se encontram.

A peste enquanto possibilidade de redenção; a crueldade enquanto rigor cósmico, necessidade inelutável da criação; a alquimia enquanto purificação da matéria, vão possibilitar, segundo Artaud, a construção de um novo sujeito, inteiro, essencial. O verdadeiro objetivo do teatro não é imitar a vida, mas refazer a vida.

A Nova Linguagem do Teatro

O Marat interpretado por Artaud no Napoleão de Gance é bastante conhecido.
Repare na mobilidade do rosto de Artaud e da gama de suas expressões.


O corpo e a voz no tempo e no espaço de representação

Refazer a vida. Eis o verdadeiro objetivo do teatro. A vida, não nos fatos e acontecimentos exteriores, mas naquilo que ela tem de mais profundo e de mais sagrado. Assim, Artaud quer arrancar o teatro literário de seu torpor, recriar algo vivo - um acontecimento: "convida-se essa linguagem a dirigir-se não apenas ao espírito, mas também aos sentidos, a atingir regiões ainda mais ricas e fecundas da sensibilidade em pleno movimento". A nova linguagem do teatro: um instrumento superior de comunicação para além do uso discursivo de conceitos, linguagem e palavras, estabelecendo um vínculo pelo qual a totalidade da emoção poderá fluir livremente de corpo a corpo, de ator a espectador.

Linguagem da poesia. Utilizar aspectos concretos da linguagem que se comunicam diretamente ao corpo, como a qualidade musical das palavras, a natureza sensual dos sons de que são feitas, a qualidade rítmica do poema que ativa os ritmos próprios do corpo: o latejar do sangue e a enorme multidão de associações não-verbais inerentes à linguagem e ativadas pelas palavras.

As inumeráveis sensações corpóreas sentidas continuamente: odores que nos invadem e que formam um permanente fundo de nossas vidas, a pressão das roupas que usamos contra a pele, a multidão de sons que nos cercam ou que andam ao sabor da nossa imaginação, o gosto amargo e doce dos alimentos e da própria vida, alegria e medo, a beleza de um pôr do sol, amor e ódio, o ritmo do pulsar do coração, a respiração, a tensão ou relaxamento dos músculos, o cheio ou o vazio dos nossos estômagos...

Artaud argumenta que esses elementos não verbais da consciência têm importância fundamental para um poeta. Eles estão intimamente ligados à própria matéria e substância da poesia: a emoção humana. Emoção que pode ser evocada através das palavras, mas não é em si mesma verbal. Todas essas emoções são experimentadas como sensações corpóreas: "toda emoção tem bases orgânicas. É cultivando sua emoção em seu corpo que o ator recarrega sua densidade voltaica. Saber, antecipadamente, quais pontos do corpo é preciso tocar significa jogar o espectador em transes mágicos. É dessa espécie preciosa de ciência que a poesia, no teatro, há muito se desacostumou."

Se olharmos o projeto corpo, ainda carregamos a má digestão de Descartes: "penso, logo existo"- separa o pensamento da existência, o corpo da mente, sendo que o lugar do pensamento é no corpo inteiro. Carregamos o preconceito de que aquilo que o corpo experimenta fica só no corpo, separamos cabeça e corpo, razão e emoção e esquecemos que o que sentimos é comandado pelo sistema nervoso central, pelos neurônios. O modo como o corpo organiza as informações é como se estivesse organizando o pensamento.

O corpo é o lugar mais adequado para se perceber que não existe diferença entre natureza e cultura... "o homem é o único organismo vivo que tem uma noção consciente e dirigida das coisas e que pode, por sua vontade, modificá-las. Resta apenas um lugar no mundo, um só, onde podemos alcançar esse organismo e dele nos servir de uma maneira ativa: é o teatro, desde que renunciemos à nossa concepção européia e consideremos o teatro como o lugar onde se manifesta uma vida consciente e excitada". E o palco, o lugar onde se poderá reconstituir a união do pensamento, do gesto, do ato.

Um teatro que fala, através de todos os sentidos, ao homem total. Uma metafísica que começa na pele, indo do gesto ao pensamento, passando pelos órgãos, como se o corpo fosse o ideograma ontológico crucial (sinal do ser humano crucial).

O que pode um corpo? Essa pergunta não é pela essência, mas pelas potencialidades de produção. É que, no teatro, o corpo não está dado e constituído. Todo o trabalho do ator repousa sobre uma hipótese que, seja ou não correta, é sempre verificável: "a de que a alma é fisiologicamente um novelo de vibrações. É possível ver esse espectro de alma como intoxicado pelos gritos que ela propaga, se não pelo que corresponderia aos mantras hindus, essas consonâncias, essas acentuações misteriosas, onde o avesso material da alma, acuado até em seus mais ocultos antros, vem contar seus segredos à luz do dia".

Isto permite ao ator tomar seu corpo como espaço material, onde essas forças se desdobram e se produzem; e cabe a ele saber captar e irradiar as vibrações, aprender a refazer seus trajetos e pontos de confluência e dispersão, produzindo conflito, expandindo-o, levando-o às últimas conseqüências, para criar um espectro plástico e infinito, consumindo e criando formas e imagens; e isso nada tem a ver com delírio descontrolado. Entrar em transe através de métodos calculados. É o que Artaud observa diante dos dançarinos balineses: "tudo, nesse teatro, é de fato calculado com uma minúcia adorável e matemática, que exige rigor, aplicação, determinação".

O transe não se apodera do ator, dotado de um estatuto rigoroso e de um método científico. A técnica como algo que garante qualidade, rigor, precisão. Exige severidade, constância e disciplina na formação do ator. Os atores-dançarinos de Bali começam a sua formação desde criança, assim como os atores-dançarinos do Kathakali, em Kerala, na Índia. Existe toda uma codificação do corpo em gestos e movimentos, existe um conhecimento científico das possibilidades de expressão do corpo, não com o objetivo de alcançar um virtuosismo técnico, mas, sim, de tornar o corpo um receptáculo dos movimentos íntimos da alma humana, fazendo com que esse corpo adquira uma temperatura interior que torne incandescentes as ações do ator, possibilitando-o locomover-se, construir-se e se tornar uma presença ativa em cena.

Em Bali o drama não evolui entre sentimentos, mas entre estados de alma, entre estados de espírito, "ossificados e reduzidos a gestos - esquemas" (...) "um certo número de convenções bem aprendidas e, sobretudo, magistralmente aplicadas. A utilização por esses atores de uma quantidade precisa de gestos seguros, de mímicas experimentadas que têm sua razão de ser mas, acima de tudo, na envelopagem espiritual, no estudo profundo e matizado que orientou a elaboração desses jogos de expressão, desses signos eficazes e cuja eficácia parece não ter-se esgotado nestes milênios todos".

"O teatro é o estado, o lugar, o ponto, onde se aprende a anatomia humana e, através dela, se cura e rege a vida". Para Artaud, o verdadeiro teatro é o exercício de um ato perigoso e terrível, porque "visa à total transformação orgânica e física do corpo humano". Um outro corpo é construído, diferente do corpo cotidiano, um corpo "em vida", um corpo "extra - cotidiano", dilatado, energético... "o teatro não é essa parada cênica onde se desenvolve virtual e simbolicamente um mito, mas esse cadinho de fogo e de verdadeira carne onde, anatomicamente, pela trituração de ossos, de membros e de sílabas os corpos se refundem e se apresenta fisicamente e ao natural o ato mítico de fazer um corpo."

Assim, para retomar o contato com a verdadeira base metafísica da existência humana, o corpo é que deve ser redespertado e reativado, ou, em outras palavras, para alcançar a esfera metafísica é preciso que nos tornemos mais físicos e "o teatro é o dado físico acessível da magia, propondo ao público uma linguagem poética, mítica, diferente do teatro ocidental europeu, psicologista". Esse estado de vida poética, proposta ao espectador, pode conduzi-lo a precipícios, mas, mesmo assim, é preferível à vida psicológica simples, sob a qual, segundo Artaud, "sufoca o teatro de sua época".

O teatro ocidental se tornou uma arte decorativa e inútil. Precisamos de uma ação verdadeira, de um teatro de ação, espetáculo de tentação onde o entendimento tem tudo a perder e o espírito tem tudo a ganhar, um teatro que nos desperte, nervos e coração. É aí que o teatro deve se reencontrar. O palco é um lugar onde se está em perigo constante. Ali, a cada noite se passa algo único, que leva a ganhar corporalmente alguma coisa, tanto a quem atua quanto a quem assiste. O teatro é uma ilusão que põe em movimento a ilusão da realidade. Por isso ele é a produção do perigo, pois "uma outra linguagem, a das paixões nasceu".

Para Artaud, o corpo é o espaço energético que produz e movimenta as ações e as paixões, na e pela respiração, lançando a vida em sua realidade insuspeita. "Alcançar as paixões através de suas forças ao invés de considerá-las como puras abstrações, confere ao ator um domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro".

É do mundo afetivo que o ator deve tomar consciência: dos músculos roçados pela afetividade, do jogo entre as respirações, desencadeando essa afetividade potencial, aumentando a densidade interior e o volume de seu sentimento. O ator é "como um atleta do coração". E para servir-se de sua afetividade, é preciso ver o ser humano como um duplo; como um espectro eterno, um espectro plástico e nunca acabado. E, como todos os espectros, esse duplo tem uma memória... a "memória do coração", que é durável. É com o coração que o ator pensa. Esse mundo afetivo comporta um sentido material. É preciso acreditar em uma "materialidade fluídica da alma. Saber que uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da matéria, dá sobre as paixões uma ascendência que amplia nossa soberania".

Artaud fala da importância de se conhecer o "segredo do tempo das paixões", uma espécie de "tempo musical" que rege seu batimento harmônico. Ele diz que esse tempo pode ser encontrado na respiração, e que a produção da respiração vai provocar, no organismo que trabalha, o nascimento de uma qualidade correspondente de esforço. A respiração "reacende a vida", "atiça-a em sua substância", acompanha o sentimento, como também entra no sentimento pela respiração. Mas sob uma condição, "a de saber discriminar, entre as respirações, aquela que convém a esse sentimento". Neste sentido, podemos perceber que Artaud não propõe ao ator o se deixar ficar emocionado, o se deixar ser levado e dominado pela emoção.

Esse sentimento que deve ser acionado pelo ator em momentos precisos da sua ação física, ele o alcança através do desenvolvimento da sua sensibilidade. O ator deve ser sensível e não emocional. A emoção gera tensão e angústia, impossibilitando ao ator construir-se livre e organicamente em cena. A sensibilidade abre os canais de percepção do ator, possibilitando-lhe ser a obra e, ao mesmo tempo, ser o escultor dessa obra; ser a partitura musical e, ao mesmo tempo, ser o seu compositor.

Para refazer a cadeia, a antiga cadeia na qual o espectador se identifique com o espetáculo, é preciso permitir que esse espectador se identifique com o espetáculo, respiração a respiração e tempo a tempo. Mas Artaud nos adverte que não basta que essa magia do espetáculo acorrente o espectador, pois ela só o aprisionará realmente se souber fazê-lo. Por isso ele dá um basta às magias ocasionais, a uma poesia que não tem ciência a sustentá-la: "no teatro, daqui para frente, poesia e ciência devem identificar-se".

Artaud quer encontrar uma nova linguagem a partir da sensibilidade, mas, ao mesmo tempo, não identifica a nova linguagem ao arbitrário, pelo contrário, "o Teatro da Crueldade é rigoroso e antipsicológico" (...) "sem matar a espontaneidade própria a cada ator, o tom da voz, a gesticulação, os movimentos de conjunto serão todos calculados a fim de obedecer a um ritmo onde tudo toma seu lugar próprio", como uma partitura musical. Assim, o corpo, como uma escritura hieroglífica de um teatro sagrado, impõe as formas e a imagem de sua sensibilidade, irradiando certas forças que têm seu trajeto material de órgãos e nos órgãos, onde o avesso material da alma vem contar seus segredos à luz do dia. O espetáculo será, para o espírito, um meio de reconhecimento, de vertigem, de revelação.

Artaud quer abandonar o hábito de um teatro falado, onde a clareza e a lógica constrangem a sensibilidade. Ele acrescenta que não se trata de suprimir a palavra, mas dela "se servir em um sentido mágico esquecido ou desconhecido. Trata-se, sobretudo, de suprimir um certo lado puramente psicológico e naturalista do teatro e de permitir à poesia e à imaginação retomar seus direitos" (...) "essa famosa poesia, que o público menospreza, não sabendo o que ela é, e que ela ainda é a única coisa que o toca sem que ele possa dizer como isso acontece, essa poesia está na base de toda ação dramática". Uma poesia em ação, uma poesia realizada, concreta, que remete o teatro a seu verdadeiro plano, aquele de base metafísica, ou seja, universal.
Podemos perceber, então, que a poesia à qual Artaud deseja dedicar-se transcende o puramente verbal e, tanto o instrumento a ser utilizado na transmissão dessa espécie de poesia, quanto o seu receptor, é de fato o CORPO HUMANO: "a gramática dessa nova linguagem deve ser encontrada. O gesto é a sua matéria e sua cabeça e, se quiserem, seu alfa e ômega. Ela parte da NECESSIDADE da fala mais do que da fala já formada. Encontrando na palavra um impasse, ela volta ao gesto de modo espontâneo. De passagem, essa linguagem roça em algumas leis da expressão material humana. Mergulha na necessidade. Refaz poeticamente o trajeto que levou à criação da linguagem".

Chama a matéria ao nascimento, à vida. É diretamente atuante...como diz Peter Brook: " palavras destinadas a sair, sob formas de sons, dos lábios de gente viva, com um tanto de entonação, de pausa, de ritmo, e gesto" (...) "uma palavra não começa sendo uma palavra - é o produto final iniciado como um impulso, estimulado por atitude e comportamento, por sua vez ditados pela necessidade de expressão" Uma linguagem que, na sua origem, nasce dessa necessidade de comunicar sua paixão ao outro. Nasce do afeto e não do racional. "Lá onde os outros propõem obra, eu mostro o meu espírito", diz Artaud.

Uma linguagem de fogo, acendedora de incêndios que, através de gritos, onomatopéias, signos, atitudes e lentas, abundantes e apaixonadas modulações nervosas, utilizada em todos os planos do espaço, faz esse espaço falar... " longe de restringir as possibilidades do teatro e da linguagem, sob o pretexto de que não encenarei peças escritas, eu amplio a linguagem da cena, multiplico suas possibilidades." Artaud nos fala que essa linguagem falada não será fixada a priori, mas determinada em cena; será feita em cena, criada em cena, em correlação com a outra linguagem, as atitudes, signos, movimentos e objetos, onde a palavra surgirá como uma necessidade.

Só assim, diz Artaud, "o teatro voltará a ser uma operação autêntica e viva, conservando essa palpitação emotiva sem a qual a arte é gratuita e sem sentido". Ele acrescenta ainda que tudo isso vai desembocar numa obra, numa "composição inscrita, fixada em seus menores detalhes, e anotada com novos meios de notação. A composição, a criação, ao invés de dar-se no cérebro de um autor, se dará na própria natureza, no espaço real, e o resultado definitivo será tão rigoroso e determinado quanto qualquer obra escrita".

Artaud nos convida a voltar para as fontes respiratórias, plásticas, ativas da linguagem, a relacionar as palavras com os movimentos físicos que lhe deram origem, a abandonar o aspecto lógico e discursivo da palavra, a recuperar o seu sentido físico e afetivo, a não considerar as palavras apenas pelo que dizem gramaticalmente e sim sob o seu ângulo sonoro, nas correntes subterrâneas de impressões, de correspondências, de analogias, onde serão percebidas como um movimento. A partir daí, a linguagem da literatura se recomporá, se tornará viva, e poderemos inscrever uma poesia no espaço.

Em "Para Acabar com o Julgamento de Deus", uma emissão radiofônica que Artaud escreveu e gravou pouco antes de morrer, a qual tive a felicidade de escutar em uma aula da professora Vera Lúcia Felício, quando cursei a disciplina "O Teatro da Crueldade enquanto metafísica concreta, relação entre o sensível e o inteligível" e que ainda ressoa vividamente em mim, pude perceber de maneira bem concreta aquilo que Artaud chama de linguagem viva, incandescente, sonora, vibratória, encantatória, para além do simples uso discursivo das palavras.

Uma atrocidade poética, a voz como uma força que se materializa, sons inabituais, orgânicos, inumanos, que vão do mais grave ao mais agudo, do suave, ao subterrâneo, ao grito, palavras que têm o poder de escavação...que têm a capacidade de perfurar o tempo e o espaço. É impossível ouvir essa gravação sem que ela nos toque de maneira profunda, sem que ela não perturbe os nossos sentidos, sem que ela não nos atinja direta e totalmente.

Uma metafísica em atividade. Uma linguagem que, segundo Artaud, "desenvolve todas as suas conseqüências físicas e poéticas em todos os planos da consciência e em todos os sentidos" (...) "fazer a metafísica da linguagem articulada é fazer com que a linguagem sirva para expressar aquilo que rotineiramente ela não expressa: é usá-la de um modo novo, excepcional, incomum, é devolver-lhe suas possibilidades de comoção física, é dividi-la e distribuí-la ativamente no espaço, é tomar as entonações de uma maneira concreta absoluta e devolver-lhe o poder que teriam de dilacerar e manifestar realmente alguma coisa, é voltar-se contra a linguagem e suas fontes rasteiramente utilitárias, seria possível dizer, alimentares, contra suas origens de fera acuada, enfim é considerar a linguagem sob a forma de encantamento".

Quero me tornar "um corpo sem órgãos", assim Artaud preconiza o seu teatro, entendido como a ação do corpo no tempo e no espaço. Um corpo que não seja reduzido pela ciência, em partes. Um corpo que não pensa o homem como fragmentário, mas como um ser inteiro...e é esse ser inteiro que se torna uma presença viva e atuante no espaço da representação, como nos diz Grotowski: "o ator-performer que unifica, em si mesmo, as qualidades de um guerreiro, de um dançarino, de um cantor e de um homem de sabedoria, atingindo as raízes (de seu próprio ser) e observando-as em ação, como uma testemunha muda de si mesmo"... e Artaud: "eu conheço-me, conheço-me porque me assisto, assisto a Antonin Artaud."

Conclusão

As colocações de Artaud não são apenas visões de um grande poeta ou visionário. Ele nos coloca em contato com o verdadeiro teatro, enquanto ritual e mágico, porque nos transforma e faz ganhar alguma coisa àqueles que nos vem assistir, tornando infinitas as fronteiras do que chamamos realidade e onde o homem impavidamente torna-se o senhor daquilo que ainda não existe e o faz nascer. Artaud escreve com sua própria carne ("lá onde outros propõem obras, eu mostro o meu espírito"), por isso só podemos entendê - lo melhor se experimentamos os seus escritos na ação concreta e com o nosso próprio corpo. Foi assim que, aos poucos, me aproximei do universo artaudiano e como ele, tenho buscado construir as bases materiais da arte teatral como uma linguagem no espaço e em movimento, onde a poesia só poderá ser eficaz se for concreta, se produzir alguma coisa através de sua presença ativa em cena.

Uma trajetória, na qual o importante não é assentar-se no que foi acumulado, não é capitalizar as habilidades técnicas e as teorias, nem passar por provas de genialidade ou de talento divino, mas no enfrentar o desafio diário em abraçar os seus limites, as suas precariedades, as suas contradições, transformando-os em matéria expressiva. Uma arte em vida, dinâmica, em movimento, em ação. A procura de uma representação habitada por marcas de sua própria história, gravada em sua memória, escrita em sua própria carne.
Um trabalho orgânico, onde o ator coloca a sua humanidade não de maneira desatinada e descontrolada. Uma matemática criadora, embasada por uma técnica que garante qualidade, rigor, precisão e que vai possibilitá-lo locomover-se, construir-se e se tornar uma presença ativa em cena, onde o ator possa ser, ao mesmo tempo, material e organizador de seu trabalho. Ele deve ser um compositor a cada dia, esculpindo e compondo a sua obra: ele mesmo, obra viva do teatro.

Isto exige um ato de extrema generosidade, pois requisita do ator que ele seja um artesão apaixonado pelo seu ofício, criando novas maneiras de perceber o mundo e pensar a experiência humana - experiência de recuperação material do ato de existir.

Retomo alguns princípios artaudianos que, aliás, só fui compreender mais claramente, na medida em que os mesmos se fizeram ação. Quando Artaud diz que o teatro não é imitação da vida, mas duplo da verdadeira vida, aquilo que está antes da forma, um caos que se organiza em meio a conflitos, em meio às forças que se jogam umas contra as outras, uma matéria em ebulição, um vir a ser...todas essas colocações me levaram a investigar o processo do ator, anterior a qualquer representação, ou seja, toda a preparação do ator para que ele possa, através de meios seguros, trazer à luz do dia, verdades que de outra forma, permaneceriam ocultas.

O ator está comprometido com a verdade e não com a simples realidade. Assim, é necessário que ele possa, durante o seu processo de formação, entrar em contato mais profundo com o seu ser, com as suas potencialidades e limitações, encarar a sua verdade e o desafio constante de auto-superar-se. Só assim ele vai poder estar presente de forma integral no palco, ou seja, não apenas fisicamente, mas fundindo corpo e mente, numa relação de correspondência interna e externa, que vai possibilitar-lhe uma ação real, consciente, voluntária, precisa e orgânica.

Uma ação acreditável, mas não realista. Uma ação consciente, justificada e funcional que vem de impulsos interiores, por isso não mecânica, não estática. Uma ação dinâmica, em vida, sempre em ebulição. Aqui se encontra a dramaturgia do ator, o seu estado pré - expressivo, que vai possibilitá-lo produzir ações no palco, vai colocá-lo em condições de saber agir em cena, mover-se, sentindo o movimento, com uma consciência íntima desse movimento, um duplo organismo - físico e afetivo - um atleta do coração, como diz Artaud, nessa dialética do processo artificial e processo orgânico.

Para que esse ator possa trabalhar sobre si mesmo (dimensão vital- organicidade) é necessário que ele tenha um quadro estruturado, uma partitura, um chão, uma técnica. Caso contrário o processo do ator corre o sério risco de se transformar em uma "sopa emotiva", como diz Grotowski. E é assim que Artaud, ao observar o Teatro de Bali, deixa claro essa questão, quando diz que os atores-bailarinos balineses entram em transe através de métodos calculados.

Ao observar as grandes tradições espirituais, milenares, podemos perceber que as mesmas sempre tiveram necessidade de estruturas, de formas, isto é, todas essas tradições se manifestam dentro de um ritual preciso e rigoroso. Só assim é possível a representação visível do invisível, em que o ator conduz coerentemente gesto e pensamento, corpo e espírito, compondo a arte de tecer as ações em cena, ou seja, a dramaturgia do ator que acontece em dois níveis: pré - expressivo e expressivo.

É esse nível pré - expressivo que fundamenta a minha pesquisa junto ao Grupo Bayu, ou seja, a construção da presença cênica do ator - uma educação permanente, anterior à apresentação, aquilo que não se vê em cena (como o alicerce de um prédio), mas que constrói o "bios cênico" do ator, como diz Eugênio Barba. Um trabalho que pressupõe consciência e vontade, em que será possível conciliar fluxo de vida e forma, espontaneidade e disciplina, pois não adianta uma composição bem feita, mas vazia, nem uma improvisação calorosa, mas sem forma.

É no Oriente que novamente vamos encontrar esse equilíbrio, um teatro que é capaz de reacender em nós a chama da vida e que tem por trás um corpo técnico rigoroso. Por isso Artaud ficou tão impressionado com o Teatro de Bali e viu no mesmo a expressão concreta do teatro que ele buscava levar ao palco. Uma cultura ligada à vida. Mas qual vida? A vida colhida na sua dimensão mais profunda, a sua existência, a sua realidade corpórea e não a imitação da aparência da vida de todos os dias, da superficialidade do cotidiano, que nada acrescenta ao nosso ser. Como diz Peter Brook: "no palco, indivíduos que oferecem suas verdades mais íntimas para outros indivíduos na platéia lotada, partilhando com eles uma experiência coletiva" (...) "a intensidade, a honestidade e a precisão de seu trabalho deixam como legado um desafio. Não por algumas semanas, não por uma vez na vida, mas diariamente".

E faço minhas, as palavras de Adolphe Appia: "e, onde quer que nos encontremos, onde quer que desejemos encontrar -nos, iluminemos o espaço com aqueles que lá se encontrem; a chama despertará clarões desconhecidos, projetará sombras reveladoras... e preparemos, assim, o Espaço vivo para os nossos seres vivos".







3 comentários:

  1. Que bom que partilharam o meu texto sobre Artaud, mas, por favor, coloque a autoria do mesmo. Autora: Cristina Tolentino.

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  2. Oi, onde posso encontrar a sua dissertação em pdf? Gostaria muito de ler

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  3. cade as referencias bibliográfica?

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