segunda-feira, 8 de novembro de 2010

LOUIS JOUVET

Sobre o ator
Louis Jouvet

A primeira fase do ator é a da vocação, aquela em que ele está em uma ignorância total de si mesmo, a de sua sinceridade. A ilusão de querer ser outro perturba sua personalidade e sua existência. Para obter uma nova identidade, ele procura fugir de si mesmo, evadir-se, e acredita ingenuamente que Orestes, Hamlet ou Alceste aguardam para tomar vida que ele enfim lhes empreste sua alma. O amor dos heróis de Racine é seu, a melancolia de Alfred de Musset é a sua. Todo o teatro - ele crê - começa nele e por ele.

A segunda fase é o resultado normal e lógico desse primeiro estado. O egoísmo monstruoso, essa congestão da sinceridade, esse frenesi nos quais vivia o ator, não podem ser suportados por mais tempo. Desiludido, fatigado, insatisfeito, o ator começa a se dar conta de que essa transferência de si mesmo para um outro, que a posse da personagem, é ilusória; seu ardor apaixonado e irrefletido dá lugar não a um conhecimento de si mesmo, mas a uma espécie de consciência de si mesmo.
Nesse labirinto em que se debatia, ele chega enfim a um impasse, a si mesmo. Ele encontra-se, descobre-se e toma consciência daquilo que faz.


É nesse mesmo momento que ele descobre a convenção do teatro, as exigências de seu ofício, que percebe seu papel complexo de instrumento e de instrumentista, e que sua existência em cena é uma função do público que o escuta, dos parceiros que lhe respondem e da personagem que deve representar.
O ator descobre assim a simulação.Descobre a mentira em que estava instalado. Reconhece e confessa sua insinceridade. Compreende que é duplo: que vive entre o ser e o parecer, em um deslocamento forçado; que aquilo que ele denominava de sua arte é antes de tudo uma prática, um ofício.


A terceira fase é a mais rara de ser alcançada e a mais difícil de fazer compreender. É aquela em que o executante domina enfim sua sensação. Tudo o que experimentava na segunda fase destila-se e sublima-se ainda até o extremo ponto de uma sensação alta, quente, e que poderíamos chamar de intuitiva. O ator, em uma curiosa independência, aproxima-se do sentimento dramático.
Tendo encontrado o sentido de seu ofício, ele pode então dar um sentido a sua vida.

"Ontem, conta Prosper Mérimée, pegamos um paguro . Quebramos sua casca com cuidado e o colocamos em um prato com água do mar. Ficou horrivelmente embaraçado e vexado. Apresentamos-lhe uma concha vazia. Aproximou-se dela e levantou uma pata no ar ao lado da concha. Satisfeito com a medida tomada, colocou a mesma pata dentro da concha para assegurar-se de que estava vazia. Apreendeu então as duas bordas entre suas pinças, tomou impulso, deu uma cambalhota a fim de realizar uma volta no ar e caiu com a cauda dentro da concha. Um momento depois passeava altivo como um pavão pelo prato."


Este é um fragmento de uma carta de Mérimée. A ambição do ator é entrar na pele do papel para proveito próprio. Semelhante ao paguro ele expropria a personagem em seu benefício.
Um egoísmo monstruoso lhe dá uma monstruosa sinceridade.
O relato de Mérimée poderia servir de apólogo para ilustrar o ator em seus começos. Ele age como o paguro.
Para parafrasear essa comparação basta ler alguns excertos de cartas de candidatos ao teatro que traduzem seu estado de espírito e suas ambições.


"Meu senhor, o escritório é para mim uma prisão sem grades. Sou etiquetado, classificado, catalogado, mas eu sinto a vida, Baudelaire e Dom Quixote, o mar, as flores, as nuvens que passam, tudo isto me emociona e me traspassa. O teatro é a realização dos seres virtuais que eu poderia ser, é sair de minha pele, ser múltiplo e desdobrado, não ser meu ser definido e limitado, é enganar o relógio, viver minhas vidas."
"Meu senhor, tenho necessidade de fazer com que os outros sintam o que eu mesmo sinto lendo Molière, Giraudoux, Claudel."
"Meu senhor, tenho uma necessidade persistente de evasão, de encarnação, uma necessidade vital de criar personagens sempre diversas, de compor para mim a cada vez uma individualidade nova, de poder dar vida enfim a essa ficção... Rir as risadas de minha personagem, sofrer o seu sofrimento, chorar suas lágrimas."

Nessa primeira fase, todas as preocupações do ator são sentir ou experimentar, alucinar-se com sensações e sentimentos, imaginar ser outro, esvaziar-se de si mesmo, ou escapar de si mesmo.


Tudo se traduz por impulsos egoístas e atitudes físicas, uma estimulação corporal, uma necessidade desordenada de dizer ou de exprimir. Fremente ou calmo, terno ou colérico, o iniciante vive em uma perpétua espera de reações; ele só é feliz quando elas o penetram e animam.


Nesse estágio, ele é um convencido; em vão procuraríamos sua personalidade, ele não a tem. Mutante, inconstante, móvel, efêmero, variável, instável, é um desertor de si mesmo e os atos que comete precedem-no sempre.
Nesse primeiro estado da vocação, nesse apetite de sensações, o pensamento não encontra lugar.
Ele não pensa: só pode sentir.
Durante um ensaio, o autor, descontente, impaciente, interrompe subitamente o trabalho sobre a cena e, dirigindo-se a um ator que não o satisfaz, implora-lhe que pense enquanto representa: "Pense, meu senhor, pense." O ator, por trás da ribalda, olha-o com espanto. "Pense, pense", reitera o autor; e o ator lhe responde: "Em quê, meu senhor?"


A frase de Réjane é mais explícita: "Eu não compreendo essa passagem. Só compreendo o que eu sinto, e eu não sinto isto."
A consciência do que é o ator ou do que ele faz em cena é muito particular. Ele geralmente é incapaz de explicar sua participação em uma peça ou de descrever a ação.


Ao final da representação de uma cena, se você pedir ao ator imaturo que lhe descreva em detalhe essa cena, ve-lo-á atordoado ou embaraçado. Ele acaba de viver com muita cólera a cena do quarto ato doMisantropo, por exemplo, acaba de mostrar a Celimene o bilhete escrito por sua própria mão, ele implora-lhe, ameaça-a:


"Percé du coup mortel dont vous m'assassinez,
Mes sens par la raison ne sont plus governés,
Je cède aux mouvements d'une juste colère
Et je ne réponds pas de ce que je puis faire."
  



Terminada a cena, ele não sabe nem o que fez nem o que disse. A sua pergunta o espanta e não pode respondê-la senão repassando rapidamente em seu espírito o texto que acabou de recitar. Quanto mais calor tenha colocado no que fez, mais estará nesse momento estupefato e desarmado.
Se o seguir pela rua, você o surpreenderá gesticulando discretamente para não chamar a atenção dos passantes, e ouvi-lo-á proferir em surdina frases incoerentes. Em casa, em seu banheiro, ele pendurou nas paredes réplicas de seu papel, repete-as em voz alta ao fazer a barba. Ele é tão anormal durante a preparação do papel quanto durante sua execução.
Nesse primeira fase, digamo-lo, o ator é normalmente extravagante.
Que é o ator na segunda fase de sua evolução? Fase absolutamente teórica, como o dissemos.


Para respondê-lo eu diria que este é o momento em que o ator sente-se confuso consigo mesmo, em que descobre enfim que sua situação não é simples.
Em Alice no País das Maravilhas - a propósito de uma mostarda, se não me engano - a duquesa pergunta a Alice: "O que é isso?" Ao que Alice responde: "é um vegetal, embora não pareça." E a duquesa diz: "Concordo inteiramente com você, e a moral disso é: Seja o que você gostaria de parecer ser ou, se quiser, dito de forma mais simples: Nunca pense que ser outra coisa senão aquilo que pode parecer aos outros que você era ou poderia ter sido não seja diferente daquilo que você tendo sido poderia ter parecido a eles ser outra coisa." 
É difícil de traduzir, mas talvez isso possa ser resumido assim: "Jamais acredite que ser diferente daquilo que você tenha sido possa parecer diferente daquilo que você era."


Ou ainda, talvez: "aquilo que você aparenta é diferente daquilo que você é, e aquilo que você parece ser aos outros é diferente daquilo que você imagina parecer." é o caso do ator.
Para tornar a coisa mais clara, basta simplesmente dizer a réplica que diz Viola, em Noite de Reis, de Shakespeare, quando, disfarçada como um jovem, vem trazer uma mensagem de amor a Olívia:"Senhora, eu não sou o que represento."É através dessa confissão desencantada, dessa decepção, que o ator acede à segunda fase.


Ele encontra-se em um espanto doloroso. O fato de representar não o transformou, não o preencheu de sonho ou de paixão; e sua solidão tornou-se ainda mais viva.
Sua convicção menos ardente agora não se exerce mais com tanta facilidade ou com tanto prazer; a realização de seu ideal não é tão fácil quanto imaginava, e o ator, em uma dúvida penosa, sente uma certa dificuldade em ser.
Se por sorte a idéia do falso semblante, da dissimulação ou da hipocrisia lhe vem ao espírito, se por milagre ele descobre a insinceridade de sua pretensa sinceridade, e ele não se sentir humilhado ou envergonhado, pode encontrar enfim a verdade de sua vocação e compreender o sentido de seu ofício.


"Um artista deve ser consciente, disse Maurice Ravel, e não sincero; há nessa última palavra alguma coisa de humilhante."
"Não podemos exprimir-nos sem explorar e portanto transformar nossas emoções, não valeria mais pelo menos ser consciente delas e reconhecer que a arte é a suprema impostura?"
"A mentira é a faculdade artística por excelência."Esse encontro da mentira é essencial para o ator.

Falar agora da personagem de teatro, de sua busca, de seu encontro, e de sua representação, de sua vida conjugada com a do ator, levar-nos-ia para além dos limites desta conversa. Mas, para medir a extensão e a importância dessa questão, citarei a confidência de um grande ator no dia de sua representação de despedida. As ovações da platéia já se extinguiram, o grande ator entra em seu camarim cheio de flores.


"Olhei, disse ele, meus figurinos espalhados, jogados aqui e acolá pela sala, e tive o sentimento de que essas personagens, que de agora em diante não mais seriam animadas por mim, estavam mortas. Minha noite foi muito agitada; tive alucinações e sonhos e essas personagens vieram me visitar. Em um minuto meu quarto foi invadido por elas. Resplandeciam, animadas por uma vida coletiva, a de todos os grandes atores de outrora que tinham representado os papéis antes de mim, e uma dessas personagens me disse: "Tu és um insensato, não somos nós que estamos mortos, és tu quem vai morrer. Tu não nos criastes, apenas vestiste. Agora iremos em busca de outros."
"E, disse ele concluindo, eu despertei mais modesto."Esta é, bem tardia em um grande ator, a descoberta da personagem.


É nessa segunda fase que se produz o desdobramento do ator, ou seja, a faculdade que tem de controlar seu jogo de cena.
Sobre essa observação, sobre esse poder, Diderot edificou uma teoria do ator.
A teoria do ator não é tão simples quanto ele acreditou.
Eis um dos exemplos que dá Diderot desse desdobramento a propósito do ator Lekain no papel de Ninias:


"Lekain-Ninias desce ao mausoléu de seu pai, degola sua mãe; sai com as mãos ensangüentadas. Está cheio de horror, seus membros estremecem, seus olhos estão perturbados, os cabelos parecem eriçar-se em sua cabeça. Sentis os vossos arrepiarem-se, o terror vos toma, ficais tão desvairado quanto ele. No entanto Lekain-Ninias empurra com o pé para os bastidores um pingente de diamante que caíra da orelha de uma atriz. E esse ator sente?" 


A verdade do teatro não é uma verdade real, tanto o espectador quanto o ator sabem disso. A dualidade, esse desdobramento, o sentido que se tem de si mesmo e dos outros ao mesmo tempo, não é um privilégio exclusivo do ator. O desdobramento ou a dualidade é comum a todo mundo.


- "Se você nunca bateu-se em duelo", aconselha Stendhal, "para manter controle sobre si mesmo, conte as folhas das árvores durante o tempo em que as pistolas estão sendo carregadas."


Em seu diário, Jules Renard conta a morte súbita de seu irmão, descreve o que acontece na câmara mortuária, suas distrações, seus pensamentos e o cuidado que teve de comportar-se como deveria: "Escrevi as comunicações em pedaços de papel, diz ele, e diante de todo mundo eu escrevi mal para fazer crer que tremia."
Que é isto, senão o hipócrita desdobramento do ator?
É deplorável que Diderot explique tudo em relação ao ator a partir desse princípio.
Mas as histórias que ele conta para mostrar o desdobramento do ator são mais divertidas que comprobatórias. Os inumeráveis comentadores de seu Paradoxo, se tivessem tido o cuidado de verificar esses exemplos, teriam dedicado menos esforço a seus trabalhos e descoberto a fragilidade e insuficiência de sua teoria.


"O sr. Népomucène Lemercier, depois de ter assistido a uma representação em que atuava Molé, não pôde resistir ao prazer de ir felicitar o ator pelos efeitos prodigiosos de seu talento.
- "Ora, disse-lhe Molé, não estou contente comigo hoje. Me deixei levar demais, não era mais senhor de mim mesmo. Entrei tão vivamente na situação que era a própria personagem, e não era mais o ator que a representa. Venha outra vez e verá..."
Lemercier retorna prontamente. No momento em que se dá a famosa cena, Molé diz-lhe em voz baixa: "Estou bem seguro de mim mesmo, você verá." Com efeito, diz Lemercier, o ator produziu uma sensação bem mais forte que da primeira vez e Molé jamais havia posto tanta arte e cálculo para emocionar os espectadores.
Temos liberdade para acreditar ou não nessa história; minha experiência pessoal não me permite dar-lhe crédito. (...)

[A terceira fase é aquela] em que o ator domina enfim sua sensação, em que ele vive em cena uma ação que sabe ser adequadamente imaginária.
Até aqui ele satisfazia-se com o fato de mudar de papel, com o prazer da novidade. Vivia sem disciplina, numa vagabundagem na qual a sensibilidade espalhava-se. Não suspeitava mesmo, como vimos, que a personagem tinha uma existência própria. Agora, sua atividade ordena-se, torna-se refletida, seu objetivo é viver intensamente para atingir entre ele e a personagem a uma contemplação.


Sem querer saborear as aquiescências, os aplausos, sem afeiçoar-se ao sucesso senão como um verdadeiro jogador, o ator mergulha nessa sensibilidade onde os próprios espectadores estão mergulhados, e nessa efusão, ele ganha uma acessibilidade, uma receptibidade novas; descobre sensações inesperadas, pensamentos insuspeitos.
Ele alcança alguma coisa de simples; o que parecia complicado sintetizou-se em um único ponto. É o momento da aproximação dramática.
Encolhido, alojado na obra, o ator vive no seio dessa obra uma história que realiza-se junto com ele. Compreende que a criação do poeta dramático é um estado interior, uma simpatia reveladora. Tudo pode estar agora ao alcance de seu espírito. Colocado no interior dessa obra, ele coincide com aquilo que ela tem de único e de inexprimível. Ele tem um conhecimento do imediato no imediato.


Ele compreende então por que é que tanto se falou, escreveu ou pensou, apenas através do uso da razão, sobre o nosso ofício. Compreende por que se tem falado tanto sobre ele e sobre o seu ofício. Entende a diversidade de tantas descrições, interpretações do papel, e as idéias contraditórias, instáveis da crítica. Percebe claramente que essas contradições são unicamente correções sucessivas, correções de correções, teorias de teorias, que procuram completar-se retificando-se através de complicações que levam a outras complicações, através de desenvolvimentos justapostos a outros desenvolvimentos. Compreende que a tradição do teatro é o idêntico e o mutável associados e que interpretar é um esforço de dilatação de sua sensibilidade.


Esse homem que vivia habitualmente à superfície de si mesmo torna-se nesse momento o lugar, o receptáculo onde se forma em estado nascente o sentimento dramático. Relais, amplificador ou condensador, ele é agente de ligação e de provocação entre o público e o autor, o órgão essencial do fenômeno dramático.
Ele vive assim em uma crise. Experimenta uma vida nova.


Através de vivas fosforescências, a peça toma sua significação e a representação torna-se uma descoberta de sentido, uma verificação. Qualquer que seja a obra, no momento em que ele a representa nesse estado de sensibilidade aguçada, o que é ou o que se faz no ator coloca-o no próprio seio dessa obra. E o texto do autor deixa de ser um texto literário para tornar-se uma transcrição física da qual ele é o primeiro destinatário e o intermediário exclusivo. Ele compreende que é a parte material, corporal do poeta, e que sua missão não é outra senão encontrar nesse texto impresso o estado físico, o veículo onde estava o autor no momento em que escrevia, e recriar em si, com exatidão, as sensações e os sentimentos.


Isto não pode ser realizado pelo pensamento, mas apenas por um estado sensível, uma prática secreta do texto através da qual a personagem é libertada.
O texto para ele é uma fórmula mágica de encantamento.
E o ator experimenta a personagem, o fastasma tomou corpo nele. (...)
Em uma oscilação repetida entre a personagem e ele, uma exortação mútua, o ator torna-se um instrumento que podemos chamar de espiritual, um sonâmbulo conquistado por suas próprias exteriorizações. Um sentido agudo, novo, aquele que habita os extáticos, faz com que ele reúna e reencontre o impenetrável domínio do criador, e assim compreende-se que o fato de representar possa abolir (naquele que pratica esse ofício) toda inteligência e compreensão no momento em que representa.
A faculdade do ator, que é a de sentir, rouba-lhe todo meio de exprimir-se. Sua mais alta qualidade é conseguir manter certo controle em um momento em que perdeu esse controle.


Tal é o glorioso equívoco do ator.
É aqui que se justifica o desdobramento, o conflito no qual ele vive.
Todos os atores possuem esse dom, mas alguns o desprezam ou ignoram. Muitos experimentam-no representando, mas não o percebem o bastante para tomar consciência disso e utilizá-lo como um meio de perfeição.
Até aqui o ator vinha querendo representar para ser outro ou mais que ele mesmo. Agora ele representa para ser melhor. Sente que a obra que representa é não mais um estado de exercício, não apenas um meio de sedução ou de sucesso pessoal, mas o próprio fim de sua vida. O teatro é então uma metamorfose momentânea, uma disciplina provisória; representar é uma preparação à intuição de uma personagem ou de uma obra.

Eu sei que todas essas alucinações explicativas sobre o ator não resistiriam a uma argumentação lógica do menor filósofo, eu o sei. Essas conversas não visam senão traduzir o estado de interrogação no qual encontra-se o ator quando busca alcançar alguma perfeição.
Poder-se-á dizer que isso é pessoal e que há apenas casos específicos. Eu o sei. Mas no domínio do inexprimível, todas as explicações são válidas e admissíveisA relação entre expressão e sentimento é um debate essencial, mas não há nada no entendimento que não tenha estado antes nos sentidos.
"Não é o que é espiritual que vem primeiro, diz São Paulo, é o que é animal, o que é espiritual vem depois."

E para nós, atores, "tudo deve ser suspeito exceto o corpo."


E para concluir essas conversas, eis o que diz François Mauriac do mistério do teatro:


"O Mistério do teatro perturba-me. Pela primeira vez, os seres que eu imagino tomam corpo, sim, literalmente, eles tomam emprestado um corpo aos homens e às mulheres chamados atores que oferecem-nos para eles por algumas horas, como fariam com um apartamento desocupado.
"Mas quando tudo termina e seu corpo lhes é devolvido, os atores não o reintegram logo depois. Esse fenômeno emociona-me sobretudo nas mulheres: desde a saída de cena, quando elas desembaraçam-se de suas personagens, não entram em posse imediata de si mesmas; passa-se um tempo vago em que observamos esses rostos ainda despossuídos. Parece que a alma desconhecida aproveita esse intervalo entre a partida da personagem fictícia e o retorno do eu cotidiano para iluminar com sua luz os olhos ainda úmidos das lágrimas, para revestir com sua paz augusta, cujo aspecto é quase terrível, os traços encantadores de uma jovem mulher.
"Essa maravilha ajuda-me a compreender de onde vem a beleza dos mortos. A máscara de Pascal não é admirável porque é a máscara de Pascal, mas porque reproduz uma figura que não reflete mais o cotidiano, onde não há mais nada que nos permita discernir a marca deixada por uma alma filha de Deus. O molde de uma face criminosa também poderia nos dar a mesma impressão sublime.
"O que anima os traços dos viventes, o que lhes dá sua expressão habitual, quase nunca é sua alma, ou pelo menos não é nunca unicamente sua alma: mas as vaidades, as paixões, as cobiças, a rusga de um vício à espreita; e nas mulheres, mesmo as melhores, o gosto de agradar, a idéia fixa de seduzir. Uma atriz que se tenha doado, que se tenha entregado totalmente ao papel que criou, permanece por um instante, terminada a representação e evaporada sua personagem, tal como será metamorfoseada pela eternidade. A parte imortal de seu ser aproveita alguns segundos para invadir essa forma efêmera que os pobres afãs de todos os dias ainda não tornaram a ocupar.
"é estranho que esse esforço de desencarnação a serviço de uma história imaginada tenha uma analogia maravilhosa com o que buscam os místicos, com esse vazio a que tendem aqueles que aspiram ser invadidos por Deus. Há no trabalho do ator um não sei quê que me assusta: talvez esse contraste entre o fim perseguido que não passa de um jogo (por mais brilhante que seja) e a grave operação de ordem espiritual que realiza-se no recôndito de seu ser - tão grave, que sua fadiga, sua lassidão ao seu término tem um caráter singular: sente-se que tocaram a raiz, a origem; hesitam, recém chegados ao mundo real. Vemos fecharem os olhos por um instante no fundo de um camarim tenebroso como se a parte de si mesmos que deixaram antes da representação tivesse perdido a rota e não pudesse reencontrá-los. Mais do que os outros homens, eles devem ter necessidade de reencontrar a vida perto de uma criatura de carne e de sangue e, como Anteu tocava a terra, de inclinar-se sem cessar sobre uma argila viva. Magnífico e perigoso ofício que consiste em perder-se, e depois reencontrar-se... Mas entre os dois estados, alguns dentre eles vivem em um outro, a despeito de si mesmos, talvez. Muitos não duvidam que, assumindo o fim derrisório que os autores lhes propõem, aconteça-lhes passar muito perto de um terrível umbral que só os santos cruzaram."


LOUIS JOUVET

Ator e diretor teatral francês nascido em Crozon, Finistère, um monumento da história do teatro de seu país, que deixou um importante legado no Thèâtre do Vieux Colombier, em Paris. Filho de um engenheiro de Brive e de uma mãe nascida em Ardennes, foi morar com sua avó para completar seus estudos no Belleville-sur-Bar, em Ardennes (1894). Quatro anos depois foi enviado com mais dois irmãos, para estudar no Les Lazaristes, uma escola religiosa de Lyon (1898). Com a morte do pai em um acidente (1901), sua mãe Eugénie mudou-se com os filhos para a casa de uma irmã, em Rethel, onde seu cunhado era farmacêutico. Por vontade da família tornar-se-ia farmacêutico, mas estudando no Notre-Dame College, ele conheceu um grupo de teatro e descobriu sua verdadeira vocação. Rejeitado várias vezes pelo conservatório de arte dramática de Paris (1906-1909) por causa de sua leve gagueira, conseguiu finalmente estrear aos 23 anos, na peça Os irmãos Karamazov, em Paris, iniciando assim uma das maiores carreiras do teatro francês do século XX. Começou a trabalhar no teatro do Vieux Colombier, iniciando colaboração com Jacques Copeau que duraria cerca de dez anos e que se estendeu à direção. Transferiu-se depois para a Comédie des Champs-Elysées, da qual se tornou diretor (1924) e dez anos depois foi nomeado diretor do Athénée, cargo que ocupou até a morte, ocorrida em Paris. Entre suas montagens ficou famosa a Le misanthrope, uma comédia (1666) da autoria do dramaturgo francês Molière. Durante sua carreira artística exerceu profunda influência sobre o teatro do período situado entre as duas guerras mundiais. Entre suas muitas inovações, desenvolveu técnicas de iluminação, criou cenários simplificados mas altamente sugestivos e deu nova importância à técnica de emissão vocal. Observador e ensaísta atento às experiências teatrais, deixou vários escritos sobre dramaturgia, cenografia, direção e contribuiu decisivamente para a renovação da concepção do teatro clássico francês. Também atuou como ator em vários filmes, como Carnival in Flanders (1936), Carnet du bal (1937), La Marseillaise (1937) e La Folle du Chaillot (1945). Viajou com a sua companhia para a América (1941) durante sete meses, ele e mais 25 pessoas e 35 toneladas de equipamentos, encantando o público de mais de uma dezena de países com os mesmos luxuosos cenários parisienses. No Brasil, apresentaram-se em São Paulo e no Rio de Janeiro, cidade onde ele ainda morou por quatro meses (1942). Devido à guerra, prolongou sua estada na América do Sul por quatro anos. Sua passagem pelo Brasil marcou definitivamente a história da dramaturgia nacional e é considerada o marco zero do moderno teatro brasileiro e uma de suas atrizes, Henriette Morineau, não voltou para a França, preferindo passar a morar no Brasil.


  

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